ALUCINAÇÃO
Lisboa, 20 de Abril de 2017
Felipe, Lucas, Renato, Stella. Olá.
Eu queria caminhar um pouco antes do sol cair e o frio pegar, mas também queria continuar ouvindo o ensaio dos mortos-vivos, então joguei o arquivo áudio no ipod e saí meio sem rumo, deixo-a-vida-me-levar. E era muito estranho escutar vocês, as coisas que vocês diziam, sobre a tentativa de fazer sentido, sobre o tesão na luta, sobre empatia, sobre tortura, e sentir que havia uma distância imensa entre os zumbis latino-americanos em pleno apocalipse e as pessoas que eu via naquelas ruas de capital europeia: adolescentes sentados em círculos no chão das praças bebendo cervejas, casais fazendo jogging com roupas combinandinho, barbudinhos hipsters em bicicletas vintage, turistas nórdicos de dois metros de altura só de camiseta. Tudo muito plácido e seguro.
Mas virei uma esquina e vi uma aglomeração em frente a um prédio antigo com uma alta escadaria, cheguei perto pra ver qualé e percebi as bandeiras de arco-íris e a faixa que dizia STOP GAY TORTURE IN CHECHNYA. Uma manifestação pacífica mas enérgica. O quarteirão todo estava cercado por caminhões do exército e soldados de uniforme camuflado, segurando o fuzil junto ao peito com o dedo próximo do gatilho, Rio de Janeiro-style. E os soldados estavam vigiando não os manifestantes, mas algum possível atacante terrorista, nesta terra onde joga-se caminhões em cima de pessoas.
Sentei na escadaria junto dos casais barbudos, meninas de 14 anos de mãos dadas com a namoradas, anarquistas meio mendigos, velhinhas meio Greenpeace, ouvindo um techno árabe que quase parecia brega do Pará, pensando que afinal não está nada aplacado, nada seguro, tudo ainda está se movendo pra algum lugar que não sabemos. Que bom. E que foda, viver é mesmo insuportável.
(E hoje acordo e leio as notícias de mais um ataque em Paris.)
O povo foi dispersando. Antes de ir embora eu vi um menino de patins que dançava no meio da rua com um ar muito feliz, um jeito fluído e espontâneo de se mover, como se estivesse não performando para os que estavam ali, mas reagindo a alguma coisa que acontecia dentro de si. Lembrei da “Alucinação” do Belchior:
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais
Cravos, espinhas no rosto, rock, hot dog
Play it cool, baby
12 jovens coloridos, dois policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor e nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor e nossa vida
PS. Enquanto escrevia, fiquei pensando em incluir também os vampiros nesta ex-conferência. Mas o vampiro é muito mais charmoso, ambíguo, perigoso e atraente ao mesmo tempo, trágico em seu ar de Hamlet imortal. Desde o “Nosferatu” do Murnau, quando ainda era uma espécie de rato gigante, até o “Drácula” do Coppola, os vampiros foram lentamente se transfigurando, passando de monstros patéticos e repugnantes a protagonistas charmosos, Tom Cruise, Brad Pitt, David Bowie, Tilda Swinton, Robert Pattinson, Evan Rachel Wood, Sharon Tate, Kiefer Sutherland, Cláudia Ohana e Fábio Assunção, tudo gente linda de morrer. Mas os zumbis são os cus-sujos, os nojentos, os figurantes esfarrapados e cobertos de maquiagem que fazem caretas e grunhem no fundo da cena e acabam destruídos de maneiras sádicas. O protagonista de um filme de zumbis é aquele que não é zumbi, porque os zumbis não têm personalidades individuais, não dá pra se identificar com eles. Os mortos-vivos só existem como integrantes de uma massa anónima e despossuída.