A CULPA FOI DA PEÇA ESCOCESA

Lisboa, 22 de Março de 2017

Eu lembro daquele dia: 2 de dezembro de 1964. Aquele dia horroroso. A Palmira telefonou pra minha casa, ela disse: Está a arder, está a arder. E eu, está a arder o que, Palmira, estás doente? O teatro, o teatro está a arder, o telhado já foi abaixo. Eu ainda não sabia de nada, não é como hoje que a gente fica a saber que uma borboleta bateu as asas na Amazônia no exato instante em que acontece. Fiquei pasma, não sabia o que fazia, como que o teatro estava a arder, ainda ontem a Mariana e o João estavam ali a fazer aquela peça escocesa. E o telefone continuou a tocar sem parar. A Amélia, o Raul, a Carminha Dolores, o Varela com a Celeste a soluçar no seu ombro, todos diziam, está a arder, está a arder. Até que não aguentei mais e saí de casa como uma louca, sem maquiagem nem nada, só passei a mão num casaco de caxemira e nos óculos escuros, que eu já estava a chorar, chorei até desidratar. Eu lembro de ver os bombeiros com os rostos negros de fuligem, pareciam comediantes, aqueles musicais ridículos com brancos a fazerem de pretos, o nariz escorria e eu limpava na manga do casaco de caxemira, um disparate. Eu vi a minha vida a virar fuligem, e pensava, para que isso tudo, meu Deus, para que isso tudo? Tanto fogo, tanto artifício, tanto empenho, tanta ansiedade, ficar esperando atrás da cortina, espiando por uma fresta pra ver quem veio, quem não veio, olha o crítico aquele, olha o escritor, olha que aquele casal voltou, é a terceira vez, olha o Monteiro, olha o Amarante, olha o La Féria, olha a Lourdes com um vestido tão fixe, olha o Sandoval com gomalina no bigode, que gajo bem ajeitadinho, para que viver essa vida atrás das cortinas, meu Deus? E me veio uma luz, ali em frente ao rescaldo dos meus sonhos. Vou abrir uma confeitaria. Ainda ontem passei ali na Rua João das Regras e vi uma loja que estava para alugar. Vou aproveitar aquelas receitas todas de bolos holandeses que a minha avó Petita deixou num caderno amarrado com fita de cetim com aquela sua letra redondinha de aluna do Pedro Nunes. E vou ficar com as mãos fortes de tanto amassar a massa, vou chamar os meus sobrinhos pra atender no balcão, que o Alfredinho já está na idade de se despachar, vou montar uma vitrine com os bolos todos arrumadinhos. E nos finais de semana vou pegar meu Citroen e levar o Sandoval e as crianças pra passear em Almada, e vou conhecer os vizinhos, acordar cedo e dormir cedo, e fazer um bolo de cinco camadas pra formatura da minha filha, e estragar os dentes dos meus netos com rebuçados, que vida tão boa que vai ser essa, meu Deus. E enquanto isso o dia amanhecia sobre os escombros do teatro, eu olhei para a praça e foi então que eu vi este senhor, sentado num banco, com as mãos a segurar a cabeça, como um personagem de tragédia francesa, e chorava, tão desfeito, tão entregue, um senhor que eu não conhecia, não era um colega de profissão que teria todos os motivos pra chorar como eu chorava. E pensei: é um espectador, alguém que ama este edifício, que viveu momentos inesquecíveis aqui, que foi tocado como eu fui tocada. Alguém que já chorou e riu aqui dentro, alguém que se apaixonou. E algo se alçou dentro de mim, e foi então que pensei, vamos reconstruir, claro. É só madeira e reboco. E a minha cabeça já estava a funcionar a todo vapor, vou chamar a Palmira e a Amélia, vamos fazer um sarau, uma leitura, um pout-pourri. E senti mais uma vez aquela picada, como um mosquitinho, e sabia que tudo ia começar outra vez.

PS. Tiranossauro Rex imagina a memória como uma espécie de biblioteca-arquivo onde todas as etiquetas foram trocadas. Neste lugar, podemos encontrar livros de ficção científica na secção de historiografia e fotos de um filme de detetives coladas num álbum de família; caixas que acumulam recordações de viagens, receitas médicas, obituários de pugilistas, vestígios de seres pré-históricos e um cinzeiro de porcelana em formato de casa. Suponham, agora, que um pesquisador pouco criterioso tenta escrever uma biografia das pessoas que possuem aquele acervo. Que relato espantoso e acidentado resultaria daí?


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