MELHOR QUE IR AO DENTISTA

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2018

Comecei a pensar em fazer um espetáculo sobre zumbis há dois anos atrás. Tinha acabado de estrear As Cidades Invisíveis no Teatro Maria Matos e ainda trazia muito viva a imagem de três refugiados numa balsa à deriva no meio do mar Mediterrâneo, imaginando cidades que nunca veriam. Eu mesmo um migrante recém-chegado à Europa, me parecia cada vez mais difícil a relação com aqueles que são diferentes de nós. Pessoas com outras crenças, outras línguas, outras cores, outros gostos, outros olhos. De repente esta outralidade parecia ter se tornado uma ameaça. Era como se todos andassem com porretes nas mãos procurando alguém para bater, um antagonista qualquer que não merecia nem respeito nem compaixão. Era como se a gente estivesse a viver numa das distopias cinematográficas que alimentavam a minha fantasia nos anos 70: a gente contra alienígenas invasores, a gente contra robôs pistoleiros, a gente contra macacos falantes, a gente contra mutantes deformados. Nenhuma possibilidade de acordo, apenas a destruição (no mais das vezes mútua).

A primeira vez que entrei numa cabine de votação foi em 1989, para escolher o Presidente do Brasil. Eu tinha 22 anos. Nasci, cresci e vi o meu filho nascer ainda durante a ditadura militar. Votei no Lula, um operário com ar zangado, que acabou por perder a eleição para o representante da tradicional oligarquia corrupta - Fernando Collor. Hoje, quase 30 anos depois e a um continente de distância, eu olho para o meu país e parece que estou a ver uma daquelas distopias cinematográficas que marcaram a minha juventude. Enquanto eu passo os meus dias dentro de um teatro inventando apocalipses imaginários, um representante da tradicional oligarquia corrupta - Michel Temer - decreta intervenção militar no Rio de Janeiro.  É como uma máquina do tempo a nos jogar de volta no passado, como o reflexo sombrio do nosso mundo em uma dimensão paralela, como uma doença que transforma a todos em predadores acéfalos. E é mais doloroso e assustador porque é real e está acontecendo agora.

E é agora, depois de ver tantos filmes de zumbis quanto eu pude com o pretexto de “pesquisa”, depois de algumas das leituras mais deprimentes da minha vida (*), depois dos meus amados Foguetes Maravilha terem feito uma versão deste espetáculo que terminava com as palavras “Fora Temer”, depois de um convite de Tiago Rodrigues para trabalhar com os atores do Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa, depois destes dois anos eu já nem sei se estamos no pré ou no pós-apocalipse. Mas sei que é apocalipse agora, e que se torna cada vez mais importante escolher com quem queremos estar nestes tempos.

Isto tudo é para falar da temporada de Ex-zombies: uma conferência que começa esta semana. Venham ver, venham.

Sempre é melhor que ir ao dentista.

(*) Por exemplo, o artigo que a jornalista britânica Katie Hopkins escreveu em 2015 para o jornal The Sun após a morte de 400 migrantes africanos e árabes no naufrágio de um barco superlotado: “Não, eu não ligo. Mostrem-me fotos de caixões, mostrem-me corpos flutuando na água, toquem violinos e me mostrem pessoas magras e tristes. Eu ainda não ligo. Não precisamos de outro projeto de resgate. O que precisamos é de canhoneiras para enviar esses barcos de volta ao seu país”.


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