CHARLTON HESTON MORRE
Lisboa, 30 de Março de 2018
Eu quero começar por compartilhar convosco uma cena de filme. Imaginem um descapotável vermelho a passar pelas ruas vazias de uma grande cidade. O condutor, que usa uns óculos escuros muito estilosos, põe uma cassete a tocar. Podem imaginar a música que preferirem a tocar nesta cassete. Qualquer uma serve.
Enquanto ouvimos a música, a câmara acompanha o condutor no seu percurso. Não há outros carros nas ruas, o que dá uma certa qualidade fantasmagórica ao cenário todo. E também não há mais ninguém à vista, nem uma única pessoa. O carro passa por ruas cobertas de papéis e móveis abandonados, até que o condutor pára diante de um prédio. Algo chamou a sua atenção. Sem dizer uma palavra, ele ergue-se do carro com uma metralhadora nas mãos e dispara uma longa rajada de balas contra uma das janelas do prédio, onde vemos brevemente um vulto que foge.
Depois o condutor guarda a metralhadora com o cano ainda a fumegar e parte no seu descapotável vermelho sem olhar para trás, levantando uma nuvem de papéis. O nome do filme aparece no ecrã: “The Omega Man”.
Assisti a este filme pela primeira vez numa madrugada de insónia diante da TV, quando tinha uns 14 anos, sem ter ideia de que filme seria. Esta rajada de metralhadora logo à partida surpreendeu-me, chocou-me, entusiasmou-me. O que estava a acontecer ali? Onde estava toda a gente? Quem seria capaz de disparar assim sem hesitação contra uma sombra mal entrevista? Podia estar a atirar contra uma camareira de hotel, um empregado de escritório, uma velhinha carregada de compras, uma criança a jogar à bola nos corredores do prédio. Quem seria este condutor? Um assassino, um psicopata, um terrorista?
Não, ele é o herói deste filme.
O filme é de 1971, no Brasil chamou-se “A última esperança da Terra”. O ator que faz de condutor é o Charlton Heston. Ele é a única pessoa imune a uma praga bacteriológica que matou praticamente toda a humanidade, transformando os poucos sobreviventes em mutantes agressivos que vivem nas sombras. Estes mutantes perseguem o personagem do Charlton Heston, que por sua vez persegue os mutantes. Como um daqueles desenhos animados de gatos e ratos, mas mais deprimente. Principalmente porque não há acordo possível aqui. Não há conciliação, entendimento, diplomacia. Só rajadas de metralhadora, fogueiras e lanças. E no fim o Charlton Heston morre.
Agora eu queria convidar-vos a imaginar que algo semelhante aconteceu connosco. Um apocalipse zombie exterminou a maior parte da humanidade, e deixou-nos isolados neste lugar, o Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, Europa, cercados por uma horda de mortos-vivos famintos que desejam apenas entrar nesta sala e mastigar os nossos intestinos enquanto o sangue ainda gorgoleja nas nossas gargantas. Eles estão a bater à porta.
E diante disso eu queria que cada um aqui se perguntasse: o que é que eu estou disposto a fazer para sobreviver numa situação como esta?
PS. Ex-zombies: uma conferência ocupou a sala de cenografia do Teatro Nacional D. Maria II entre os dias 01 e 27 de Março de 2018, tendo destruído um número irracional de melancias entre ensaios e apresentações, como bem atesta a diretora de cena Catarina Mendes.