AUTO-CARAVANAS

Lisboa, 05 de Julho de 2019

Tempos atrás eu li uma matéria de jornal que dizia o seguinte: em 2010 morreu no estado de Kerala, no sul da Índia, um senhor de 87 anos chamado William Rozario. Com ele morreu o Crioulo de Cochim, idioma que surgiu no século XV a partir das navegações portuguesas para o Oriente. William Rozario cresceu a ouvir Crioulo de Cochim, era a língua que se falava em casa e na rua. Mas ao longo de sua vida, foi perdendo interlocutores. Sua esposa nunca aprendeu, nem seus filhos. Outras línguas assumiram as mesmas funções - principalmente o inglês. Quando morreu, William era a única pessoa no mundo que ainda dominava o Crioulo de Cochim. Como tantas outras, esta era uma língua híbrida, surgida do encontro entre pessoas de culturas diferentes que buscavam maneiras para conversar, negociar, aprender, ameaçar, transmitir, partilhar, criar, mentir, amar. Uma língua como se fosse uma ponte entre lugares diferentes. Uma ponte que com a morte de William se fechou.

Como o tigre siberiano, o orangotango de Sumatra e o golfinho do Amazonas, as línguas em vias de extinção, faladas por algumas centenas ou menos de uma dezena de pessoas, não perdem apenas população: perdem também território, rotas migratórias, alimentos, diversidade genética, capacidade evolutiva. No final do século em que vivemos agora, a grande maioria das línguas e dos animais que hoje existem no planeta não estarão mais aqui, a não ser em gravações, livros, lembranças, zoológicos, arquivos. Serão irrelevantes. Serão passado. O mundo estará mais monocórdio e monocromático.

Há cerca de dois anos, o Festival Materiais Diversos convidou a mim e Paula Diogo para criar um espetáculo a partir das línguas minoritárias portuguesas: idiomas circunscritos a pequenas regiões e localidades do país, falados por uma quantidade cada vez menor de pessoas. A ideia básica era passar um tempo em algumas destas regiões e localidades, em contato com os falantes de três destas línguas: o minderico, o barranquenho e o mirandês. Uma espécie de trabalho de campo, de coleta etnográfica de impressões, costumes, vestígios.

Vejam bem, nem eu nem a Paula somos linguistas ou antropólogos ou sociólogos. Trabalhamos com teatro, em projetos dentro de um espectro muito amplo daquilo que se considera artes cênicas. Projetos sobre memória e esquecimento, ou fronteiras e migração, ou sobre autores como Roland Barthes e Italo Calvino, ou sobre como aprender a nadar em uma piscina vazia ou como sobreviver a um apocalipse zombie. Mas talvez o ponto comum destes projetos tão díspares em termos de procedimentos e resultados está no desejo de promover encontros. Descobrir o que acontece quando eu sou colocado diante de alguém que não sou eu. Ou quando visito um lugar que não conheço. Eu sou brasileiro (caso não tenham percebido). Paula é portuguesa, de ascendência angolana. Nos conhecemos há exatos dez anos, no contexto de um projeto chamado Estúdios, promovido pela companhia portuguesa Mundo Perfeito juntamente com o Teatro Maria Matos.

Um projeto com uma premissa curiosa: reunir aqui em Lisboa um grupo de 4 criadores portugueses e 4 criadores brasileiros, que nunca haviam trabalhado juntos antes, para num período de 3 semanas criarem 3 espetáculos diferentes. Uma espécie de salto no vazio sem rede, suscetível a toda espécie de acidentes. Cada um dos 3 espetáculos foi nomeado a partir de grafites que víamos nas paredes em nosso trajeto para o teatro: o primeiro chamava-se “Sempre”, o segundo “Pedro procura Inês” e o último “Bobby Sands vai morrer Tatcher assassina”. Eram títulos a proclamar a sensação mista de urgência e acaso que impregnava aquelas criações. E a sensação de que a cada semana iniciávamos uma expedição em território desconhecido, sem vislumbrar ainda o ponto de chegada.

Paula e eu sabemos muito pouco sobre o ponto de chegada deste projeto sobre o qual estou a falar, um espetáculo sobre as línguas minoritárias portuguesas chamado A menor língua do mundo a estrear em Setembro deste ano no Festival Materiais Diversos. Não fizemos antecipadamente uma pesquisa ampla e aprofundada sobre o tema. Nos preparamos como quem vai partir em uma longa viagem sem saber se vai para a praia ou a montanha, se vai fazer calor ou frio, enchendo a mochila com barretes de lã e sandálias havaianas, livros de poesia mas nem um único mapa, rolos de fio de pesca mas sem anzol, latas de comida mas sem o abridor de latas. Nos preparamos para nos perder em território desconhecido.

Convidamos para estar connosco três atrizes que também vêm de lugares diferentes. Sílvia Felipe é portuguesa e tem uma longa trajetória que atravessa o teatro, o cinema, a TV e a ópera. Zia Soares é angolana e dirige o grupo Griot, que trabalha com artistas e questões de origem africana. Bibi Dória é uma jovem brasileira que atua no cruzamento entre a dança contemporânea e a performance. São criadoras que já trabalharam numa gama muito grande de contextos, procedimentos e linguagens. Chamamos ainda a realizadora Leonor Castro Guerra, para registar as residências em Super-8, um formato de película que está em extinção: há cada vez menos fabricantes e laboratórios que ainda produzam e revelem Super-8. E o músico João Lopes Pereira, que transita entre a música clássica e o jazz.

É o primeiro projeto que fazemos com esta equipe. A ideia foi tentar descobrir no próprio processo as maneiras de falar entre nós e com as pessoas que encontraríamos. Como preparar uma rede para apanhar algo que ainda não sabemos o que é.

Ao ouvir-me falar em “rede” e “apanhar” sinto que estou assumindo a personagem do explorador com chapéu de cortiça, um descobridor ou colonizador imperialista. Parece que vamos colecionar gramáticas exóticas e raros falantes e prende-los com alfinetes em mostruários envidraçados, como se fossem borboletas. Ou empalhar suas cabeças para colocar em nossas paredes. Mas a nossa perspectiva criativa não é a de descobridores ou colonizadores - é a de nômades. Deixem-me retornar um bocado. A ideia foi tentar descobrir no próprio processo as maneiras de falar entre nós e com as pessoas que encontraríamos. Porque o “falar com as pessoas” é o que nos interessa aqui. Não se trata apenas de aprender as palavras de outra língua, mas aprender as pessoas que hoje estão a falar esta língua. Descobrir o que estas pessoas têm para dizer. Aquilo que vem antes da língua.

A fala surge do diálogo, não do monólogo. Para falar, precisamos de outras pessoas. Se por algum motivo agora vocês todos se levantassem e abandonassem a sala e eu ficasse aqui sozinho, eu provavelmente interromperia esta leitura. Sentindo muita pena de mim mesmo. Ainda bem que vocês continuam aqui.

Eu comecei dizendo que em 2010 morreu William Rozario, o último falante de Crioulo do Cochim. Mas alguns anos antes morreu um certo senhor Francis Paynter, vizinho de William que também cresceu e viveu ouvindo e falando Crioulo. Após a morte do vizinho, William nunca mais usou o Crioulo para falar com alguém. Foi neste momento que a sua língua perdeu a razão de ser.

Quando pensamos numa imagem para este espetáculo que ainda iremos fazer, imaginamos uma caravana de personagens que atravessam um cenário devastado de alguma destas fantasias pós-apocalípticas que tão bem conhecemos do cinema e da televisão. Um pequeno grupo de sobreviventes viajando pelo fim do mundo em busca de um futuro possível. E ao longo do caminho vão recolhendo vocabulário como quem recolhe ferramentas, mantimentos, conhecimentos, experiências, cicatrizes, relações, sementes. Palavras.

A primeira residência foi há cerca de dois meses em Barrancos, uma vila na fronteira com a Espanha onde ainda se fala o barranquenho, um dialeto que cruza elementos do português com o espanhol.  É considerado uma “língua de contacto” entre duas culturas. Depois disso fomos a Miranda Douro, uma região cercada por cordilheiras e rios onde se fala o mirandês, a segunda língua oficial de Portugal. O isolamento geográfico da região permitiu que a língua se desenvolvesse durante centenas de anos, passando da tradição oral para a escrita. Hoje há escolas onde se estuda o mirandês e obras de outras línguas traduzidas para o mirandês, como por exemplo as bandas desenhadas do Asterix, que contam histórias de uma aldeia irredutível de gauleses isolada em meio ao império romano. E finalmente estaremos ainda este mês no Minde, onde também estreará o espetáculo. É a terra do minderico, que surgiu como um dialeto dos tecedores e vendedores de mantas da região.

Em cada residência estiveram apenas alguns integrantes da nossa equipa, responsáveis por depois transmitir o que foi aprendido aos restantes. Só estaremos todos juntos pouco mais de dois meses antes da estreia do espetáculo. Sabemos que muita coisa vai se perder nesta passagem de informações de uns para outros. Talvez a imagem mais preciosa ou a expressão mais significativa de cada lugar fique esquecida no meio do caminho. Acreditamos que isso também faz parte do projeto. Que para falar de memória temos que falar de esquecimento, de perda. De engano.

Na terça-feira que passou o Teatro Nacional Dona Maria II, um dos coprodutores deste projeto, fez o lançamento de sua próxima temporada. Para isso convidou espectadores para falar brevemente sobre cada espetáculo da temporada. Espectadores que subiam ao palco e diziam porque pretendiam assistir ao espetáculo em questão. A “nossa” jovem espectadora, natural da região onde se fala minderico, contou que estava curiosa com a imagem de uma auto-caravana a acelerar por uma paisagem apocalíptica. Paula e eu havíamos imaginado uma caravana, um grupo de pessoas a caminhar lentamente a pé, carregando os seus pertences em sacos e cestos, em carroças ou nas costas. A diferença talvez não esteja na palavra, mas na perspectiva.

O educador brasileiro Paulo Freire disse: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” O método de ensino criado por Freire, baseado nas vivências e saberes dos alunos, foi utilizado por ele pela primeira vez para alfabetizar um grupo de trabalhadores de plantação de cana-de-açúcar há mais de 50 anos. De lá para cá, seu método tornou-se uma referência mundial na área de educação. Para Freire, cada aluno criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e não seguindo um já previamente construído. Mas para o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, Paulo Freire foi um comunista perverso que deveria ser apagado da história brasileira. Ditadores têm medo de palavras que não conseguem controlar. Para Bolsonaro, assim como para Trump, Erdogan, Salvini, a força de uma língua se mede pela sua capacidade de calar as demais. Eles anseiam pelo silêncio da extinção, por um mundo monocórdio e monocromático.

No final das contas é por isso que falamos. Porque ainda podemos.

PS. Este texto sobre o projeto A menor língua do mundo apresentado em 05 de Julho de 2019 no simpósio internacional Línguas e variedades linguísticas ameaçadas na Península Ibérica, a convite do CIDLES - Centro Interdisciplinar de Documentação Linguística e Social.


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