O MAR VAI VIRAR MAIS MAR
Lisboa, 27 de Setembro de 2019
Eu vou contar o que imaginei.
Está tudo escuro para começar. O palco tem alguns bancos e cadeiras espalhados, uns mais altos e outros mais baixos. Algumas cadeiras de crianças como se fossem da casa dos Sete Anões. E cortinas e aparelhagem técnica, e outras coisas que não se vê porque está escuro. E há também barulho de água. Vem de baixo do palco. O barulho de água é provocado pelo aquecimento global que está a derreter o gelo dos pólos e aumentar o nível dos oceanos. Antes de morrer Glauber Rocha disse: “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. E ele tinha razão, mas só pela metade: porque o sertão vai virar mar, sim, mas o mar vai virar mais mar ainda.
Mesmo assim nós ainda não estamos preocupados com isso, até porque o palco do Cineteatro de Alcanena é bem alto. A água vai demorar a chegar cá em cima. Simplesmente subimos todos para o palco e combinámos que vamos começar a falar sem parar até quando o mar nos engolir e não pudermos mais continuar. Falar até perder a noção das palavras que estamos a falar. Este é um espectáculo duracional. Lento, mas imersivo. Profundo. Reflexivo. Violento às vezes. Misterioso. Cruel. Mutável. Fluído. Generoso. Azul. Infinito.
Ficamos a listar todas as palavras que poderíamos relacionar ao mar. Quando esgotamos o português, passamos para as outras línguas, todas as línguas do mundo. Algumas não tinham muito para contribuir: a língua falada pelos beduínos do deserto tem apenas uma definição para mar, que quer dizer: distante. Mas a língua dos habitantes de Kirabati, que é um país composto de pequenas ilhas espalhadas pelo oceano Pacífico. E enquanto o mar vai subir e subir e subir e chegar até o palco e vamos ter que subir nas cadeiras, sem parar de falar, salgado. Liso. Caprichoso. Mas o mar continua a subir e aos poucos as pessoas começam a se calar, porque o nível da água chegou às bocas e ouve-se apenas um som que é mais ou menos assim:
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PS. A menor língua do mundo é um projeto de Alex Cassal e Paula Diogo, a convite do Festival Materiais Diversos. O projeto era para criar um espetáculo a partir das línguas minoritárias portuguesas: idiomas circunscritos a pequenas regiões e localidades do país, falados por uma quantidade cada vez menor de pessoas. Ao longo de um ano, realizamos residências em algumas destas regiões e localidades, em contato com os falantes de três línguas: o minderico, o barranquenho e o mirandês. O espetáculo resultante estreou em 27 de Setembro de 2019 no Cineteatro de Alcanena.