A SOLIDÃO DO HERÓI
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2019
“O país chamado Brasil está tão dentro da gente que é impossível sair.”
Glauber Rocha
O ano é 1967. Um voo lento sobre o mar até chegar à costa, avançando terra adentro por entre florestas e montanhas ao som de uma batida de candomblé. Uma legenda em caixa alta ocupa a tela: ELDORADO, PAÍS INTERIOR, ATLÂNTICO. É o primeiro plano de uma revolução que vai engolfar uma época, uma geração, e cujas consequências ainda estão aí, mais pertinentes que nunca. Terra em transe é um filme sobre heroísmo, realizado por um dos maiores heróis do cinema brasileiro.
Mas esperem. Vamos voltar algumas cenas atrás.
Estamos no Brasil em 1964. Um golpe civil-militar derruba o governo democrático do presidente João Goulart e coloca o país sob uma ditadura que vai durar mais de 20 anos. Os caminhos da oposição legal vão se estreitando entre atos institucionais, governadores biônicos e ataques de grupos paramilitares, até que parece restar apenas uma opção. Como lembra Daniel Aarão Reis Filho, “com as margens de liberdade e crítica reduzidas a quase zero, era como se estivessem realizando as condições da utopia do impasse. O advento do tudo ou nada. Ou, como se dizia entre os revolucionários, socialismo ou barbárie, sem nuanças ou meio-termos”. E espremidos entre o tudo e o nada, alguns poucos brasileiros pegaram em armas, panfletos e embaixadores, os olhos voltados para a Cuba de Che Guevara e o Vietnã de Ho Chi Minh. Grupos como ALN, VPR, VAR-Palmares ou MR-8 acompanharam o surgimento de uma nova personagem naquele cenário de crise: o guerrilheiro urbano, com a missão de conduzir as massas rumo ao socialismo, uma ideia na cabeça e uma Thompson-lata-de-goiabada na mão.
No final dos anos 60, a revolução era a ideia que crescia como piolhos nas cabeleiras mais inusitadas, inflamava a imaginação, parecia estar em toda a parte: nos jornais, nos cinemas, nos festivais da canção, nas conversas de bar, nos cartazes de PROCURA-SE colados nos muros de Copacabana. E, por algum tempo, a vitória até pareceu possível. A paisagem tupuniquim foi iluminada fugazmente por personagens como Lamarca e Marighella e por feitos como o sequestro de Charles Elbrick, a guerrilha do Vale do Ribeira, o roubo dos dólares de Adhemar Rouba-Mas-Faz de Barros. Mas havia um abismo entre as teorias marxista (via Lênin) e foquista (via Debray) e a realidade da luta de classes abaixo do equador. E no fim das contas as massas não pegaram o bonde puxado pelas vanguardas. A revolução brasileira nunca se tornou uma revolução popular. O povo parecia estar cercado pela repressão política e policial, chapado pelo milagre econômico, cantarolando “a taça do mundo é nossa”, “eu te amo meu Brasil”, “ame-o ou deixe-o”. O povo tentava sobreviver ao presente, enquanto a vanguarda queria construir o futuro. Nesse diacronismo, se perderam. E os revolucionários – isolados, acuados, forçados a um combate nas trevas (expressão de Jacob Gorender) que não poderiam vencer – foram derrotados pelas forças de um regime que não hesitou em usar as armas mais brutais contra os heróis que o desafiavam.
Sim, porque estes jovens radicais e velhos comunistas foram heróis, ao acreditarem na possibilidade de mudar o mundo com as próprias mãos, sem acordos, sem negociação, até mesmo sem esperanças. Afinal o herói não é necessariamente aquele que sai vitorioso. Muito menos aquele que está certo e faz o bem; ele é antes de mais nada uma força destruidora.
Vocês já devem ter percebido onde eu quero chegar. Falo de herói nos termos que foram pronunciados por Joseph Campbell: “o herói mitológico não é o patrono das coisas que se tornaram, mas das coisas em processo de tornar-se.” Aquele herói que aparece nos contos de cavalaria medieval e nas lendas africanas, em histórias contadas ao redor do fogo há milhares de anos e no “Star Wars”. Uma personagem de força sobre-humana e caráter inflamável, com uma tendência incontrolável de tropeçar em conflitos, incomodar poderosos e morrer jovem. Alguém que está permanentemente em ação: decifra segredos, brande espadas, rompe corações, derruba torres, degola dragões. Não aceita mediações ou adiamentos – é o sujeito da história por excelência. Ou, nas palavras de Eudoro de Sousa, “este homem não está em trânsito, ele próprio é o trânsito”.
Como não poderia deixar de ser, o herói é um sujeito perigoso, para si e para os outros. Ele é um antagonista. E por isso é tão necessário. Porque ao desafiar a ordem das coisas, ele força a transformação. O herói impede o mundo de cair na letargia, e é isso que o justifica. Sua lança aponta para o depois.
O grande embate no Brasil dos anos 60 parecia ser entre o passado e o futuro, tanques militares e procissões da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade contra células subversivas e cabeludos com guitarras elétricas. Eram tempos de geleia geral, um país no limiar da modernidade mas preso à Casa Grande & Senzala. Além de metralhadoras e granadas, a insurreição se fazia com ferramentas igualmente explosivas: arte, sexo, propaganda. Revolucionários numa quantidade e radicalidade ainda inaudita seguiram suas próprias trajetórias heroicas. Podemos falar aqui em Caetano Veloso e Gilberto Gil, Hélio Oiticica e Sérgio Ferro, José Agripino de Paula e Décio Pignatari, Zé Celso Martinez Corrêa e Augusto Boal, Leila Diniz e o Pasquim, Joaquim Pedro de Andrade e – finalmente – Glauber Rocha.
Não se acompanha a trajetória de Glauber sem tropeçar constantemente na palavra “revolução”. Glauber viveu intensamente e morreu cedo. Deixou um corpo de obra que ainda se recusa a ser sepultado; filmes e escritos, ideias e discursos que marcaram seus contemporâneos e quem veio depois. Glauber falava alto e movia-se rápido: estava em um debate jornalístico sobre neo-realismo italiano e na figuração de um filme de Buñuel; censurado por fazer filmes com “mensagens subversivas de profundidade de maneira subliminar tão acintosa que chega a poder ser considerada direta” e acumulando prêmios em festivais internacionais; encarcerado por participar de um protesto contra o regime e apresentando um programa de entrevistas na TV Tupi; reencarnação de Castro Alves e Antônio Conselheiro. Com ele, o “cinema de guerrilha” é levado às últimas consequências. Seus filmes não são fáceis, não apaziguam nem divertem, pois falam de um mundo onde a dominação – e a luta contra a dominação – atravessam todos os níveis: político, econômico, afetivo, cultural. Para Glauber, ser um criador dentro deste panorama é, inevitavelmente, ser revolucionário: “Como pode um autor forjar uma organização do caos em que vive o mundo capitalista, negando a dialética e sistematizando seu processo com os mesmos elementos formativos dos clichês mentirosos e entorpecedores? A política do autor é uma visão livre, anticonformista, rebelde, violenta, insolente.” Ou: “Não existe nada de positivo na América Latina a não ser a dor, a miséria, isto é, o positivo é justamente o que se considera negativo. Porque é a partir daí que se pode construir uma civilização que tem um caminho enorme a seguir.”
Logo no início de Terra em transe, o “herói negativo” Paulo Martins, poeta e jornalista, é baleado pela polícia do golpe de Estado que tomou o país fictício de Eldorado. No momento de sua morte, ele revê sua trajetória como delírio: as lutas entre políticos de esquerda e direita (igualmente corrompidos), a miséria das massas, o compromisso radical consigo mesmo, que o leva a trair e ser traído por todos que ama. Paulo é a encarnação das contradições dos intelectuais, ao mesmo tempo revolucionário e burguês, movido pelo sofrimento do povo mas com um desprezo incontido por este mesmo povo “fraco, falador, covarde”. Ecoando Frantz Fanon, Glauber escreveu: “Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.”
Em Terra em transe, encontra-se representada uma das questões centrais da obra de Glauber: a negação da oposição entre Bem e Mal. Esta perspectiva dialética, não-maniqueísta, incomodava tanto as teses conscientizadoras da vanguarda quanto a paranoia dos conservadores. Era um tempo que precisava de certezas e inimigos claros, e Glauber os fundia e estilhaçava em uma explosão criativa que transgredia todos os manuais e as regras (de cinema, de guerra, de boas maneiras). Ao assistir ao lançamento de Terra em transe, o então jornalista Fernando Gabeira sentiu-se incomodado com a construção “elitista” do protagonista, sua “revolta quase pessoal e desesperada” que nega “a ação organizada das massas”. No entanto, anos depois, escrevendo sobre os acontecimentos que o levaram ao exílio, o ex-guerrilheiro Gabeira percebeu que, no fim das contas, esta acabou sendo a sua trajetória política: pegar numa metralhadora e sair atirando a esmo.
Sim, Terra em transe incomoda. Durante um comício político, Paulo tapa a boca de um sindicalista, dizendo: “Isto é o povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!” Outro manifestante tenta falar, mas é preso, amarrado, lhe enfiam um revólver na boca, ele é assassinado. Ao seu redor, padres, intelectuais, sambistas, militantes de esquerda e políticos giram numa celebração delirante. É mais que uma denúncia, é mais que a realidade do nosso país; é a realidade enquanto transe. Para Glauber, a revolução política sozinha não seria capaz de superar nossas contradições, porque estas contradições estão no seio das próprias vanguardas. No fim das contas, o destino dos revolucionários é o mesmo destino do herói: isolar-se até a morte. Quem vai à frente costuma ir sozinho; costuma morrer sozinho.
O germe da autodestruição (usando a expressão de Paulo Francis) faz parte da fisiologia do herói. “Eu me libertei e por isso não volto atrás”, diz Paulo Martins. Ele não acha lugar nem à direita nem à esquerda, mas passa por dentro destas estruturas e as abandona. Sozinho. Significativamente, esta é a maldição lançada pelo senador fascista Porfírio Diáz na cena em que se representa, de forma alegórica, um elemento característico do ciclo mítico: o assassinato do pai. Após trair Diáz, utilizando o poder das imagens, seus múltiplos significados potenciais, Paulo o derrota fisicamente. Radicaliza assim o rompimento dos laços que o prendem ao passado, aos afetos, aos compromissos – com os outros e consigo.
A natureza de Paulo é a luta, a recusa dos caminhos previamente abertos, e mais: recusa a certeza, a lógica, o equilíbrio. Ele é arrogante e insubmisso. Enquanto o governador deposto, o populista Vieira, aceita o golpe de Estado para não provocar um banho de sangue, Paulo com uma metralhadora nas mãos prega a luta suicida: “será o começo de nossa história.” A recusa em compactuar, o nojo por discursos e acordos é a mesma hubris que condenou Aquiles e Hamlet. Em meio à crise, só a ação é possível, a ação radical, mesmo que conduza à morte. Poeta, ele dirá: “A poesia não tem sentido... Palavras... As palavras são inúteis.”
Terra em transe atravessa as fronteiras entre linguagens e gêneros: thriller político, psicodrama romântico, teatro, ópera, alegoria, pastiche, documentário, delírio, pompa grotesca e miséria barroca. Há uma recusa ao bom-gosto e ao equilíbrio, tudo é desmensurado; a crise brasileira atravessa tanto a forma quanto o conteúdo, transformando este filme em um ser monstruoso e belo. Ismail Xavier reconhece a “avalanche de gestos e falas, o ritmo deixando o espectador sem fôlego, trazendo a muitos a impressão de caos, pois o filme não ressalta os esquemas que, dentro dele, organizam a representação; prevalece a sucessão de choques”. Para Gilles Deleuze, é o próprio cinema de agitação: “a agitação não decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar em transe, o povo e seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto para pôr em contato as violências quanto para fazer o negócio privado entrar no político, e o político no privado.” Para Barthélémy Amengual, “Terra em transe representa essencialmente um enorme massacre em seu esplendor, seu formigamento quase fúnebre, por trás da queixa pungente de um herói desorientado que se julga traidor porque foi traído. Todas as personalidades e formações políticas, todas as instituições, todas as aspirações individuais ou coletivas são indistintamente recusadas, levadas à decadência ou ao ridículo”.
O olhar de Glauber sobre a sua época é tão preciso justamente porque ele se recusa a ser apenas uma testemunha. O golpe, as maquinações das elites nacionais e estrangeiras, a violência, a miséria, tudo está lá, mas não apenas representado, não apenas refletido. Eldorado não é apenas o Brasil, mas vários Brasis, passados, presentes, futuros, hiper-reais e surreais, verdadeiros todos, insuportáveis todos (antes de Terra em transe, Glauber realizou um documentário institucional sobre o governador José Sarney – o resultado foi descartado por ser “realista” demais). A realidade de Glauber é revolucionária porque está prenhe de possibilidades, potencialidades, significados. Terra em transe é um chamado à ação heroica, como percebeu Caetano Veloso: “à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar. (...) Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim.” Ou Zé Celso Martinez Corrêa: “Fui violentamente influenciado por Terra em transe.” E de fato, Terra em transe está na origem de pelo menos duas das obras mais representativas da época: a canção “Tropicália” e o espetáculo “O Rei da Vela”.
Paulo é herói porque aspira ao absoluto. Ele recusa a ordem, a certeza, a conclusão: “Eu sabia apenas que não aguentava o mundo em que vivia e que por isso mesmo eu tinha que começar a abrir os caminhos, começar de qualquer jeito, mesmo que deixasse os caminhos pela metade, à espera de que outros mais lúcidos que eu pudessem chegar ao fim.” A militante Sara tenta demovê-lo: “Não precisamos de heróis.” Mas Paulo, este Hamlet tropical (na definição precisa de Ivana Bentes) já ultrapassou o momento de ser ou não ser. Ele acelera o carro em direção a uma barreira policial, carregando uma metralhadora que não lhe serve de nada, é mais símbolo que arma (Ismail Xavier: “O destino da arma é permanecer nas mãos do poeta ao longo de sua agonia, como um fetiche”). Já não há separação entre utopia revolucionária e a própria vida: “Precisamos resistir, resistir! Eu preciso cantar!”
A destruição de Paulo já estava determinada desde o início do filme – é apenas a lembrança-delírio de sua vida a que assistimos. Paulo morre porque não aceita, não silencia, não compactua, porque recusa-se a parar no meio da estrada (é seu destino romper os limites). Paulo fracassa: o mal não é derrotado, a morte do dragão é apenas um delírio que se esvanece entre sons de canhonaços e acordes operísticos. Ao final, realiza-se a elevação do fascista Diáz ao poder, numa coroação grotesca e profana celebrada por autoridades que parecem destaques de escolas de samba. Misturar políticos e bufões, padres e vedetes, donos de emissoras de TV e índios falsos, é de uma insolência profundamente lúcida. Como lúcida é a previsão dos rumos da luta armada no destino de Paulo: ele vai combater até o fim, sozinho, e morrerá atirando contra o céu de chumbo que cobre o país.
PS. Este texto é a exumação de um trecho da tese que escrevi (orientado por Denise Rollemberg) no início dos anos 2000 para finalizar o curso de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Apresentei-o num debate na Cinemateca de Lisboa a convite do Cineclube Gaivota. Não posso deixar de notar que Terra em transe, mais de 50 anos após a sua realização, continua assombrando a nossa má consciência coletiva. O discurso de posse de Porfírio Diáz poderia sair da boca do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro: “Aprenderão! Dominarei esta terra. Botarei estas histéricas tradições em ordem. Pela força! Pelo amor da força! Pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!” Os heróis mudaram. Glauber faz falta.