O SALTO DO CAVALEIRO JEDI
Lisboa, 17 de Março de 2017
A maioria dos espetáculos entrega, com alguma facilidade, os procedimentos internos que conduziram a sua criação. As tarefas, as crenças, os interesses, as estratégias relacionais, o aglomerado ético de afetos e decisões artísticas. Entramos em uma sala de espetáculos e vemos um grupo de pessoas a olhar para uma certa direção, o que às vezes nos dá vontade de olhar para esta direção também e assumir a perspectiva daquelas pessoas; ou às vezes nos basta apenas isso - olhar para um grupo de pessoas que olha para uma direção, e ser tocado pelo rigor do conjunto, ou pela inventividade, o discurso, os pequenos detalhes, as grandes linhas organizadoras daquele quadro.
Às vezes estes procedimentos internos são o próprio espetáculo. É como assistir um relojoeiro a desmontar e remontar o mecanismo de um relógio, não para consertá-lo mas pela alegria da reconstrução. Também aqui posso ficar ligado na virtuose do relojoeiro, ou na inteligência com que ele reorganiza a ordem das peças, criando um novo relógio do antigo. Ou simplesmente sentir-me contagiado pela alegria e curiosidade renovadas que orientam aquela montagem.
Eu tenho a impressão que a alegria e a curiosidade que sinto cada vez que vou assistir a um espetáculo de Ana Borralho e João Galante é um reflexo do calor vibrante que eles colocam em suas criações. Ana e João interessam-se por pessoas, pessoas que não estão ali para serem idealizadas ou mistificadas, pessoas vivas e presentes, pessoas mesmo no meio do salto, no auge da sua força e vulnerabilidade. É bonito isso. São espetáculos que demandam intérpretes generosos e corajosos, e que convidam os espectadores a também serem generosos e corajosos. Gatilho da felicidade tem a loucura confiante de um cavaleiro jedi que se atira no abismo escuro, não porque é um suicida, mas porque preparou-se para isso. Todos nos preparamos para isso, foram décadas de quedas e fugas, encontros e perdas. Alguns aprendem a evitar os abismos escuros. E outros continuam a cair e cair, a escolher cair novamente nas profundezas pulsantes e sensuais que vão nos dizendo enquanto caímos “até aqui tudo bem”.
PS. Que este seja um espetáculo para público jovem torna-o ainda mais urgente necessário. Que esteja apenas esta semana no Teatro Maria Matos sublinha a palavra “urgente”.