QUATROCENTOS GOLPES
Salvador, 10 de Agosto de 2012
O menino foge do internato, sai correndo por uma estrada com vegetação dos dois lados. O lugar é tão bonito. Ele veste uma espécie de cardigã preto, a camisa por dentro é branca, uma gravata e calça escuras. Parece que está frio; estamos na França, e no inverno as folhas caem de verdade. O menino correndo, correndo, passando por galhos secos, folhas caídas, um córrego, uma casa à beira da estrada, com paredes em curva e tijolos aparentes, um portão, com uma escada pendurada na horizontal, uma coisa incomum, sabe? Ouço o som dos seus sapatos com solas duras moendo a terra da estrada, passarinhos, a respiração do menino. Não há música. Agora, vejo as golas de seu casaco, não é um cardigã. É um casaco. As golas estão puxadas pra cima. O menino continua correndo. O nome dele é Antoine Doinel e ele continua correndo, há uma transição, a paisagem muda, fica mais ampla, e agora sim há música, um bocado cafona para a minha sensibilidade de mais de meio século depois, o menino desce correndo uma encosta e vemos uma paisagem incrível. É o mar. É o mar. É o mar. Ele desce alguns degraus e chega na praia. Ele corre mais devagar, com quem quer sentir o barulho que a areia molhada faz nas solas duras dos seus sapatos. Ele olha para um lado e depois para o outro, para a extensão a perder de vista da praia e do mar. Posso ver as pegadas úmidas que se formam em seu rastro e logo se reconfiguram na superfície plana e sem defeitos da areia à beira do mar. Ouço as ondas a quebrarem por entre os acordes da música. O menino passa por pequenas poças de água e chega, finalmente, à primeira onda de sua vida, entra no mar, molhando os sapatos e as meias e a barra das calças. Ele dá alguns passos, mas já interrompeu a corrida, interrompeu o avanço, começa a retornar em direção à câmara, volta as costas para o oceano. A imagem congela em seu rosto, vejo o rosto do menino ele tem um olhar, uma expressão... Parece que ele... É uma expressão como se ele... Uma expressão... A expressão do rosto dele parece... parece... Ele está finalmente diante do mar, é o mar, é o mar. O que ele está sentindo tem de ser algo como, como... Parece algo como... A expressão dele, a sua expressão parece...
PS. Jean-Pierre Léaud tinha 14 anos quando protagonizou o filme de François Truffaut. Durante as gravações, Truffaut levava Léaud para ver as filmagens do “Acossado” Jean-Luc Godard todas as noites. Após a morte do cineasta, Léaud disse que Truffaut “falava com as crianças como se fossem adultas. Ele percebeu que as crianças compreendiam as coisas melhor do que os adultos. Era puramente intuitivo. Trabalhávamos numa espécie de cumplicidade”. Uma das mais extraordinárias cumplicidades da história do cinema, que se estendeu por duas décadas nos filmes “Antoine e Collete”, “Beijos Proibidos”, “Domicilio Conjugal” e “Amor em Fuga”. Tome isto ao coração estreou em 15 de Agosto de 2012 no Teatro ICBA em Salvador.