300 MIL OU 500 MIL

Rio de Janeiro, 25 de Julho de 2013

Tem gente que diz que foram 300 mil, ou 500 mil, ou mais de um milhão. Eu fui com Marina, ficamos um tempo na saída do metrô Presidente Vargas, esperando Felipe e Baines. Era um mar de gente, uma onda que parecia não começar em lugar nenhum e não acabar mais. Aquele mar de gente que só se vê em bloco de carnaval e jogo do Brasil. Muita gente com a bandeira do Brasil, a camiseta do Brasil, rosto pintado com as cores do Brasil, muita muita gente levando cartazes, contra o aumento das passagens, contra o governo, contra a copa, contra a PEC, contra o Cabral e o Paes, contra o Ronaldo, contra o Feliciano, muita sacada poética, muita piada boa nesses cartazes. O pessoal ia gritando palavras de ordem, de vez em quando alguém puxava o hino nacional e então todos cantavam. No início todo mundo canta junto, lá pela metade cada um já está num pedaço diferente da letra, muitos hinos diferentes que crescem em "verás que um filho teu não foge a luta" e terminam juntos em "pátria amada Brasil".

É boa a sensação de ser um numa multidão, de estar fazendo parte de algo que, quem sabe, pode ser importante. Os helicópteros da polícia e da Globo passavam sobre a avenida, levando vaias e dedadas, pichados pela luz verde dos chaveirinhos lasers. As pessoas nos prédios piscavam luzes, jogavam papéis, sacudiam bandeiras e lençóis. Muitas pessoas rindo, pessoas se encontrando, pessoas atualizando as fofocas ("Que canalha! E você disse o quê?"), pessoas explicando umas às outras o que está acontecendo no Brasil. Um clima de tranquilidade e alegria. Mas já nessa altura passavam entre nós uns caras musculosos, com a camiseta enrolada na cabeça, escondendo o rosto, andando num ritmo um pouco mais rápido que o resto da galera em direção à vanguarda da manifestação. Um rapaz subiu num ponto de ônibus pra ver mais à frente, foi vaiado, gritos de "sem vandalismo", outro rapaz foi até ele lhe passando uma descompostura, "desce daí, babaca, depois vão dizer que estamos quebrando tudo". Achei a reação despropositada, e ao mesmo tempo positiva em sua autoconsciência.

Passamos pela Central do Brasil, Sambódromo, chegamos à altura da Estácio, e aí a multidão parou, de repente. Ficamos ali uns quinze minutos, e começaram a vir as informações, meio desencontradas: "tem muita gente lá", "tá rolando confusão", "a polícia começou a jogar gás na frente da prefeitura", "eles tão vindo pra cá", "vamos recuar", "vamos ficar aqui", "vamos sentar no chão", "vamos avançar". Dava pra ver a nuvem de fumaça mais à frente e ouvir o som das bombas. As pessoas começaram a ficar com medo, a voltar pela Presidente Vargas, o cara do alto de um carro de som gritava "ninguém recua, temos que marcar posição, enfrentar os homens", alguém gritou de volta "então desce pra cá, mané".

O barulho das bombas aumentava, o movimento de recuo também. Começaram as primeiras correrias, súbitas, contaminando algumas pessoas e interrompendo-se subitamente também. Muita gente ainda ria e conversava, mas bem menos. Todos estavam atentos ao que acontecia mais à frente. Então o movimento de recuo se tornou constante e crescente. Passavam pessoas com os olhos lacrimejando, dizendo "não dá pra ficar, eles estão vindo com tudo" e "pra ALERJ, vamos pra ALERJ".

Voltamos por onde viemos, a manifestação parecia ter tomado o sentido contrário. O som das bombas continuava, e parecia nos acompanhar durante o caminho de volta, nos seguindo, e depois ao nosso redor, nas ruas laterais. Na altura do Terreirão do Samba, estouros mais fortes, barulho de coisas quebradas, mais gritos de "sem vandalismo", mas mais esparsos. Vi um rapaz encapuzado pendurado em um poste, arrancando um banner da Copa das Confederações.

Começava a acumular-se uma sensação, que parecia geral, de frustração, de falta.

Ao chegar no Campo de Santana, vejo as grades do parque coberta de cartazes, centenas de cartazes que foram sendo colados ali pelas pessoas que retornavam, um memorial lindo e múltiplo. Mais atrás, uma coluna de fumaça escura subia do Terreirão do Samba. O som das bombas crescia, e agora começávamos a ver com mais frequência encapuzados chutando as portas dos bancos, derrubando placas, jogando pedras em vitrines. Paramos na esquina da Presidente Vargas com a Rio Branco, nos perguntando se seguíamos pra ALERJ ou o quê. De repente, a onda de depredação ganhou força, dezenas de pessoas atacando tudo que parecesse ser quebrável ou derrubável - bancas, vitrines, lixeiras, pontos de ônibus. A multidão já corria pela Rio Branco, nos deixamos ficar para trás, alguém passou gritando "é o choque, foge". Corremos, olhando para trás, nos chamando, "cadê o Felipe?", "cadê o Baines?", "vamos pelo canto!".

Paramos na esquina da Rua do Ouvidor, em uma pequena aglomeração de pessoas. Um rapaz usava um poste de metal contra a vidraça do McDonalds, enquanto os funcionários corriam apavorados lá dentro. Os vidros se despedaçaram numa cascata caindo pela calçada. Havia sons de conflagração atrás de nós e à nossa frente. Parecia não haver caminho desimpedido. "vamos para a Primeiro de Março", "lá está pior". Súbito, não havia mais escolha, uma linha de motos avançou na direção da nossa esquina, corremos pela primeira transversal que vimos, mais motos e bombas em cada ruela, uma sensação de ratoeira, de Pacman na vida real, e um medo vago, mais excitação que medo, como se tudo fosse mesmo um jogo, uma gincana.

Chegamos ao Castelo, paramos um pouco naquele espaço mais aberto, relativamente mais calmo, ainda nos perguntando por onde seguir. A Rio Branco estava tomada pela fumaça, não era uma opção. Fomos pela Graça Aranha, onde não havia polícia, até a altura do consulado americano, quando todos começaram a correr novamente. Na esquina da Presidente Wilson, olhei para trás e vi o fogo tomando a rua e encapuzados improvisando barricadas.

A linha de motos avançava, seguimos na direção da Praça 4 de Julho, e quando as motos da polícia apontaram na esquina, atravessamos para o aterro. Os policias atiravam indiscriminadamente, três bombas caíram no lugar onde estávamos há segundos. A Cinelândia estava tomada de fumaça e policiais. A Rio Branco era um cenário de guerra civil.

Desistimos de tentar voltar à manifestação, se ainda havia manifestação. Já se aproximava das 22h. Caminhamos em direção à Glória, pensando em pegar metrô lá. A entrada da estação estava tomada de gente. Alice me liga, está a uma quadra dali, no boteco da esquina da Cândido Mendes. Vamos até lá, as mesas cheias, muita gente de pé, Alice, Abib, Michel, Pedroca. Alice diz "foi tenso". Estou ali há menos de cinco minutos quando alguém grita "lá vem eles", todos automaticamente levantam e correm, atravesso a rua e vejo uma bomba de gás explodindo no meio da multidão que tentava entrar no metrô para sair dali. A farmácia e os bares baixam as portas de ferro, caminhamos até a Praia do Flamengo. As motos da polícia nos seguem. Uma menina chora e diz "me deixa ir embora, eu tô com medo". Uma viatura passa devagar por nós, a porta do passageiro aberta, o policial com uma bomba na mão. As pessoas se aglomeram em um ponto de ônibus, dizem "filhos da puta, fascistas". A viatura passa, seguida por muitas motos.

Não há táxis, os ônibus passam lotados, sem parar, xingados pelos que ficam nos pontos. Todos parecem exaustos. Ninguém mais ri. Uma adolescente no ponto fala para os amigos, "minha mãe não pára de ligar, ela não sabe que eu vim pra manifestação. Como eu vou embora?"

Eu fico na Praia do Flamengo, esperando seja o que for. Marina, Felipe e Baines seguem na direção do Catete. Um homem passa em uma vespa, buzinando e gritando "amanhã vai ser maior".

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