A PELE, A CARNE, OS OSSOS
Lisboa, 02 de Abril de 2018
O nome da minha avó era Eunice. Mas todo mundo a conhecia por Petita. Era uma de várias irmãs que viveram com as alcunhas francesas que tinham em criança. Conheci apenas mais uma, a tia Bijou, que foi para a casa dos meus pais para morrer, como os elefantes. A avó Petita morava na rua Jerônimo Coelho, em Porto Alegre, no mesmo quarteirão onde eu vivia com os meus pais, ao pé da Praça da Matriz. Era um apartamento com móveis escuros, cortinas pesadas, muitas estantes com livros (que levavam na folha de rosto o nome do meu avô David ou do meu tio João Pedro, que estava exilado na França por conta ditadura, embora na época eu ainda não soubesse o motivo, apenas que tinha um tio nunca visto). E muitos bibelôs de porcelana. Eu saía da escola e passava na sua casa para comer um doce e ver o relógio-cuco tocar. Às vezes eu ainda me pergunto o que terá acontecido com este relógio-cuco.
Provavelmente ficou com algum dos meus irmãos.
A avó Petita nunca foi alegre, mas foi ficando cada vez mais triste, cega e fraca. Nos últimos anos ela foi cuidada pela Zaira, que tinha alegria de sobra para as duas. Quando eu passava pela sua casa (que não era mais na Jerónimo Coelho, mas um apartamento mais pequeno na Demétrio Ribeiro, próximo do Colégio Paula Soares onde eu estudava), era a Zaira que se encarregava dos doces, das conversas, das risadas. Depois que a minha avó morreu, Zaira foi trabalhar para o meu pai, num apartamento no décimo-quinto andar de um prédio com vista para o rio Guaíba. Um dia meu pai chegou em casa e Zaira não estava. Era inverno, mas a janela da cozinha estava aberta e os chinelos de Zaira estavam à beira da janela.
Talvez na época alguém me tenha dito porque Zaira pulou da janela. Mas hoje eu já esqueci.
Assistir Sobre lembrar e esquecer é como ler o diário de uma pessoa que conhecemos e amamos e que já não está aqui, e lemos não apenas o diário mas as memórias que temos daquela pessoa e que se sobrepõem às palavras em camadas semi-transparentes, como se o diário fosse uma daquelas enciclopédias antigas com mapas de países e corpos que se revelam aos poucos, a pele, a carne, os ossos. Paula Diogo, Masako Hattori, Sónia Baptista, Estelle Franco e Mariana Ricardo construíram um modelo quadridimensional de algo que não conseguimos conter ou definir, mas que sabemos o que é, conhecemos seu gosto e cheiro, já passamos por esta encruzilhada. Algo que compartilhamos com os elefantes, as sequoias, as ilhas, as ruínas. Um clique, um encaixe. Um deslizar que leva as coisas certas para os lugares certos.
PS. Sobre lembrar e esquecer, a primeira parte de uma trilogia concebida e concretizada por Paula Diogo, estreou em Abril de 2018 no Teatro Maria Matos em Lisboa.