O RESTO É ESTÓRIA
Lisboa, 09 de Dezembro de 2024
Acho que quem me apresentou Márcia Lança foi o Felipe Rocha, será? Pode ter sido, porque Felipe me apresentou metade das pessoas mais importantes que entraram na minha vida nestes últimos 20 anos. (E Dani Lima me apresentou a outra metade, inclusive o próprio Felipe, claro. Já a Dani ninguém me apresentou, mas vi em algum lugar em Botafogo um cartaz a dizer “Oficina de Dança nas Alturas”, mal cheguei no Rio de Janeiro com a canastra às costas. E eu lembrava de ter visto Dani - e Felipe - no vertiginoso “KABOOM” da Intrépida Trupe, e em meio a um elenco de figuras míticas ela era como uma deusa elétrica de potência e beleza flutuando acima das nossas cabeças como se aquilo fosse natural e fácil, e só por isso fui até o Clube dos Macacos fazer uma aula e o resto é estória. Eram os anos 90, tudo é estória.) Mas tenho quase a certeza que foi sim o Felipe quem me apresentou Márcia Lança, numa festa (?) no Bairro Alto (?). Devemos ter trocado duas ou três frases (como sabem, eu domino completamente a fina arte da comunicação espontânea).
Nos anos seguintes, em sucessivas idas e vindas entre o Rio de Janeiro e Lisboa, tive a oportunidade de assistir em 2011 o seu O desejo ignorante, que era como ser lentamente imerso num sonho alheio, experimentando a mais prazerosa das dissoluções de personalidade. E voltei a vê-la em 2015 no incrível O que fazer daqui para trás de João Fiadeiro, um espetáculo que frequentemente volta ao meu pensamento. Para mim, as passagens de Márcia pelo palco a carregar sanitas, rodas de bicicleta e árvores inteiras era o pico culminante de um espetáculo que já era todo em altas.
Assim, quando em 2016 Tiago Rodrigues convidou-me para criar para o Teatro Nacional D. Maria II o espetáculo que seria o Tiranossauro Rex, eu, fresco e novo em Lisboa, pus-me a pensar em atores e atrizes excepcionais, inteligentes, sensíveis, versáteis e com ferramentas expressivas para transformar os meus textos prolixos em cenas capazes de absorver os espectadores, suas expectativas e desejos. Ato contínuo, pensei em convidar a bailarina Márcia Lança para fazer teatro. E ela aceitou o convite, surpreendentemente (ainda hoje desconfio que ela aceitou apenas porque o seu amigo de longa data Tónan Quito estava no projeto; e Tónan Quito por sua vez aceitou porque não tem medo de nada).
E o resto, já sabem, é estória. De lá para cá, foram quase dez anos de colaborações, viagens, festas de aniversário, crises existenciais, despedidas, doenças, crianças a nascer e a crescer, muitas salas de ensaios. Tenho orgulho de dizer que Márcia é minha amiga.
E agora estamos em Dezembro: um ciclo que se fecha, momento de contabilizar os fins e os começos. Também a Rádio Existência completa a sua temporada, com o lançamento do quarto e último episódio (por enquanto). Após as viagens de Bruno Huca, Gaya de Medeiros e de outro que já não recordo, agora é a vez de Márcia Lança empreender a sua jornada pelo território material e imaterial de Torres Vedras.
Entre todos, o episódio de Márcia me tocou mais fundo, deixando uma impressão que repercutiu pelos dias que se seguiram. É bonito, ver o mundo pelos olhos de outra pessoa (ou ouvir o mundo pela voz de outra pessoa). Conduzidos pela sua narrativa serpenteante, descemos o Rio Sizandro, por entre sacos de compras e tempestades, Fernando Pessoa e Metallica, lavadeiras e guarda-rios (uma profissão que descobrimos que não existe mais em Portugal desde o século XIX), contra a corrente simultaneamente no tempo e no espaço, como no clássico de ficção científica “A terra que o tempo esqueceu”. Márcia consegue costurar em ponto miudinho a grande História dos séculos que erguem e derrubam pontes com a narrativa mais íntima, a memória de uma adolescente, sozinha no quarto, com lágrimas a jorrar dos olhos como se estivesse a reviver a morte do cavalo Artax no Pântano da Tristeza enquanto os sucessos da banda inglesa James tocam no gira-discos.
Hoje, Sábado dia 07 às 21h30, Márcia vai estar no Teatro-Cine de Torres Vedras para a primeira audição pública da sua peça. Vai ser uma noite que deixará a todos de pés e cabelos molhados, tenho certeza.