GUERRAS, PANDEMIAS E CONSPIRAÇÕES
Lisboa, 07 de Novembro de 2024
Conheci a mala voadora quando esta já completava dez anos, comemorados em conjunto com o Mundo Perfeito. Por dez horas ininterruptas, um fluxo constante de artistas passou pelo palco do Teatro Maria Matos a apresentar excertos de espetáculos e homenagens mal ensaiadas, solos de violino, duelos de espada, receitas culinárias, shows de drag queens, enquanto um casal de turistas permanecia acampado ao fundo durante a coisa toda. Lembro que mandámos fazer t-shirts que à frente diziam “Tiago Rodrigues não merece o nosso talento”. E às costas “Jorge Andrade também não”. Uma mensagem com um tipo de humor ao mesmo tempo auto-referente e auto-depreciativo, característico destes criadores.
Anos depois, o Jorge convidou-me a escrever um monólogo a partir da versão da mala voadora para o “Fausto”, tragédia sobre ascensão a alturas desmensuradas e queda aos abismos infernais. “Fausto” foi um dos maiores projetos da mala voadora e um dos seus maiores tropeços. Tudo que poderia dar errado, deu (há projetos que são assim). Fui tocado à partida por este convite que vinha com a aceitação de uma fragilidade que todos compartilhamos, na arte e na vida. No fim, o erro é muito mais comum do que o acerto. Raro é abraçar o erro como parte do que somos.
Assim mergulhei no “Fausto” para fazer o inFausto. E amei o “Fausto” em sua desmesura e singeleza, sua desenvoltura e falta de jeito, sua graça e seriedade. Reduzir tudo isto para caber em inFausto foi como fazer um modelo em escala de um espetáculo que por si já era um modelo em escala de toda uma nação, de um mundo em constante frêmito. Quando eu estava a (tentar) escrever o monólogo que viria a ser inFausto, Trump, Boris Johnson, Bolsonaro e Putin eram os presidentes dos EUA, UK, Brasil e Rússia. Roe v. Wade ainda não havia sido revogada por uma corte de fundamentalistas. Havia notícias de bombardeamentos e refugiados na Síria e Afeganistão, mas ainda não na Ucrânia; a Zona de Exclusão de Chernobyl ainda podia ser visitada por turistas com detetores de radiação pendurados ao pescoço. O assassinato de Marielle Franco vinha há quase dois anos sem solução; mas Bruno Pereira e Dom Phillips ainda estavam vivos. A Madonna morava em Lisboa. E então uma súbita pandemia encerrou teatros, aeroportos, museus, escolas, fronteiras. E tudo ficou mesmo, mesmo estranho. Eu olhava para o mundo e o reflexo que o mundo me devolvia era uma face distorcida, um Unabomber megalomaníaco-conspiratorialista-negacionista-pós-apocalíptico, de cuecas em seu bunker enferrujado, a comer rações desidratadas com um detetor de radiação pendurado ao pescoço.
O texto foi entregue ainda durante o confinamento, quando a data de reabertura dos teatros (e aeroportos, museus, escolas, fronteiras) era tema de especulação e dissenso. Talvez nunca estreasse, talvez. Talvez estreasse num mundo bastante diferente daquele em que fora escrito. Se melhor ou pior, era difícil de prever. Mas não parecia provável que o mundo fosse apenas continuar igual.
No fim das contas, mesmo quando estou a tentar escrever sobre o outro, o mundo que me escapa e desafia, eu continuo a escrever sobre mim mesmo. Passado algum tempo, já era difícil separar o que era Jorge e o que era eu em inFausto. Entreguei um monólogo feito sob medida para ele mas que cabia à perfeição no meu próprio feitio. E quando finalmente estreamos e finalmente pude ver o Jorge em cena, emocionou-me (narcisicamente) não perceber a separação entre o que era eu e o que era ele, ver os próprios meus erros, minha ambição, meus pactos corriqueiros com o diabo alquimicamente transformados em alguma coisa maior do que eu, maior do que o conjunto de pessoas reunidas naquela sala de teatro, quase do tamanho do mundo continuamente a acabar em guerras, pandemias e conspirações.