E DE REPENTE PERCEBEMOS QUE COMEÇA A NEVAR LÁ FORA

Lisboa, 11 de Dezembro de 2019

Foi uma longa e trabalhosa jornada.

Começou há dez anos, quando o Tiago Rodrigues e o Mark Deputter convidaram um pequeno grupo de brasileiros para, juntamente com um pequeno grupo de portugueses, criar três espetáculos em três semanas. Não nos conhecíamos antes de o avião nos despejar no Verão de Lisboa. Trancámo-nos imediatamente na pequena sala de ensaios do Teatro Maria Matos, olhámos uns para os outros e perguntámos: “E agora o que fazer?” Sem outro remédio, começámos. Inventámos histórias sobre começos e fins, sobre eternidade e meloas partidas, sobre migrantes e discursos políticos, animais derretidos e um teatro que dançava sozinho. Aos poucos deixámos de ser desconhecidos; pelo contrário, parecia que já estávamos há muitos anos trancados naquela pequena sala de ensaios, como se o mundo inteiro lá fora tivesse deixado de existir e fôssemos os últimos seres vivos do planeta. E foi então que imaginei pela primeira vez um nevão impossível a cair em Julho sobre Lisboa e sobre todos os outros lugares do mundo. E continuei a imaginar o que aconteceria connosco então: os desafios, os acidentes, as perdas, as descobertas. O início desta história. Apresentámos os três espetáculos (correram bem), despedimo-nos todos com promessas de reencontro e apanhei o avião de volta para o Rio de Janeiro.

Nos anos seguintes voltei muitas vezes a Lisboa, onde hoje vivo com Joana, nosso filho e o fantasma de uma cachorra. E também voltei muitas vezes a esta ideia. Acumulei rascunhos, anotações, livros e recortes: como uma fotografia do escritor Robert Walser morto, o seu corpo caído na neve; histórias sobre canibais e incendiários; e uma excepcional banda desenhada argentina publicada nos anos 50 chamada “El Eternauta”. Finalmente, em 2016, achei que era hora de me livrar de vez desta ideia. Escrevi um texto com início, meio e fim (mais ou menos), chamei-lhe Morrer no teatro e propus ao Mark Deputter apresentá-lo no Teatro Maria Matos; parecia o melhor sítio para contar uma história que começou na sua sala de ensaios. Convidei pessoas talentosas e generosas para estar comigo (porque tento sempre estar com pessoas que possuam as qualidades que me faltam). E começámos.

Hoje parece óbvio que um texto que fala sobre o fim do mundo não se deixaria montar tão facilmente. Enquanto começávamos, o teatro onde íamos estrear deixou de existir. O Maria Matos agora está fechado, a acumular poeira nas suas poltronas e varas de luz. Andámos com a casa às costas por um tempo, a ensaiar em salas subterrâneas que lembravam abrigos nucleares, ou num convento reformado, ou numa pequena casa com as janelas abertas para as planícies ensolaradas de Espanha. Tivemos outras estreias, partidas e chegadas entretanto. Tivemos uma morte e um nascimento. Fins e começos.

E estreámos numa ilha (correu bem).

Agora finalmente este espetáculo, que era uma ideia vaga num Verão de Lisboa de há dez anos, encontra os seus espectadores neste Teatro do Bairro Alto, ao mesmo tempo tão velho e tão novo. Ainda não sei quem vocês são, mas sei que estarão nas vossas cadeiras, esperando que o espetáculo comece, esperando que seja um bom espetáculo, ou que pelo menos não seja muito longo. E enquanto isso, a neve começa a cair lá fora.

Começamos.

PS. Héctor Germán Oesterheld, o jornalista e escritor que em “El Eternauta” imaginou a cidade de Buenos Aires coberta por uma neve mortífera, desapareceu em 1977 nos porões da ditadura argentina. Esta nota de rodapé é só para lembrar que as democracias, por mais fortes e antigas que sejam, ainda podem ser fechadas. Assim como os teatros. Entre a escrita de Morrer no teatro e a sua estreia, um golpe político derrubou a presidenta eleita do Brasil (a primeira mulher a ocupar este cargo) e instaurou um regime de exceção que está a extinguir direitos, a aumentar a desigualdade, e a censurar, aprisionar e assassinar opositores.


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ADORMECER. VIAJAR. MORRER.