O TEATRO E A PESTE

Lisboa, 12 de Maio de 2020

Shakespeare, dizem, escreveu “Rei Lear” enquanto estava trancado em casa, durante um dos surtos de peste bubônica que dizimaram um quarto da população de Londres no início do século XVII. O livro “Station Eleven” de Emily St. John Mandel começa assim: “O rei estava de pé numa poça de luz azul, à deriva. Era o quarto ato de ‘Rei Lear’, uma noite de inverno no Elgin Theatre, em Toronto. Mais cedo, no palco, três meninas brincavam de bater ritmadamente as palmas das mãos umas das outras enquanto o público ia entrando, versões infantis das três filhas de Lear, e agora elas retornavam como alucinações na cena da loucura. O rei cambaleava e estendia a mão para alcançá-las enquanto elas esvoaçavam para lá e para cá entre as sombras. O nome dele era Arthur Leander. Tinha cinquenta e um anos e havia flores em seu cabelo.” Logo depois o ator erra uma fala, tropeça e cai no palco diante dos colegas de cena. Morre em instantes. Será seguido nas semanas seguintes pela grande maioria da humanidade, atingida por uma epidemia mortal de gripe que se alastra sem controle por todo o planeta. Os poucos sobreviventes herdam um mundo sem aviões, policiais, antibióticos, metrópoles.

Vinte anos depois da epidemia, uma companhia nômade de atores e músicos viaja de comunidade em comunidade em carros puxados por cavalos, apresentando sinfonias de Beethoven e textos de Shakespeare. Pintado na lateral de um dos carros, o lema da companhia: “Porque sobrevivência não é suficiente”. Entre os seus integrantes está Kirsten, uma das meninas que participara daquela montagem fatídica de “Rei Lear”. No mundo pós-apocalíptico de Mandel há violência e desespero, mas também humor e afeto. Há um sinistro líder de culto e um Museu da Civilização que guarda artefatos que já não têm função, como laptops e revistas de celebridades. Há um mistério engenhoso que se revela aos poucos, como num quebra-cabeças em que as peças foram espalhadas ao longo dos vinte anos entre o fim da civilização e a jornada em que Kirsten vai precisar colocar em uso tanto o Shakespeare que tem decorado quanto as facas que carrega no cinto.

É um bom livro para se ler em confinamento. Nos apresenta um mundo com fronteiras que vão se ampliando progressivamente, em que a consciência de tudo que se perdeu não turva a expectativa do que ainda está por vir: “Um veado atravessou a estrada à frente deles e parou para os fitar antes de sumir no meio das árvores. A beleza deste mundo em que quase toda a gente tinha desaparecido. Se o inferno são os outros, o que é um mundo quase sem pessoas? Talvez a humanidade simplesmente se apagasse em breve, mas Kirsten achava esta ideia mais tranquilizadora que triste.”

Continuando no mesmo tema, outra história em que uma trupe de atores viaja por uma paisagem pós-apocalíptica: “Mr. Burns” de Anne Washburn. Mas aqui o que se apresenta diante de uma plateia de escassos sobreviventes não são as tragédias de Shakespeare, mas sim encenações de “Os Simpsons”. Mas sem TVs ou internet, resta apenas a memória dos atores para reconstituir piada a piada as aventuras dos moradores de Springfield. Os três atos da peça de Washburn mostram como anedotas trocadas ao redor de uma fogueira podem ir lentamente se transformando em mitos fundadores que refletem nossos traumas e pulsões, numa mistura indiscriminada de Homero e Scorsese, trechos de ópera e refrãos pegajosos de Britney Spears, talk-shows e Reader’s Digest, memes e Zizek.

E finalmente, um filme menos conhecido do movimento Dogma 95: “The King is Alive” de Kristian Levring. Um grupo de turistas viajando pela África fica preso em um pequeno vilarejo abandonado. Não há perspectiva de resgate, a comida logo vai terminar e o verniz de civilização começa a descascar rapidamente sob a força do sol do deserto. É neste cenário desesperado que um dos viajantes resolve ensaiar uma peça teatral – justamente o “Rei Lear”. A escolha não poderia ser mais apropriada. “Estarias melhor na sepultura do que expondo teu corpo nu a tais extremos do céu. O homem é apenas isto? Observem no bem. Não deve a seda ao verme, a pele ao animal, a lã à ovelha, nem seu odor ao almiscareiro. Ah! aqui estamos nós três, tão adulterados. Tu não, tu és a própria coisa. O homem, sem os artifícios da civilização, é só um pobre animal como tu, nu e bifurcado. Fora, fora com estes trapos emprestados.”

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