FOGO QUE ARDE
Lisboa, 14 de Junho de 2025
I remember where I came from
There were burning buildings and a fiery red sea
I remember all my lovers
I remember how they held me
World without end remember me
When my father died we put him in the ground
When my father died it was like a whole library
Burned down
World without end
Remember me
Laurie Anderson
No dia 10 de Junho um grupo de nazistas empoderados pelas últimas eleições em Portugal insultou e espancou atores na entrada do Teatro A Barraca em Lisboa, onde se apresentava o espetáculo “Amor é um fogo que arde sem se ver”. Nesse mesmo dia, o Xeque David Munir, o imã da mesquita de Lisboa, foi alvo de insultos racistas e, no Porto, adeptos do Chega agrediram voluntários que distribuíam comida para os sem-abrigo. Foi também no 10 de Junho, dia de Camões, que nazistas mataram Alcindo Monteiro, cidadão português nascido em Cabo Verde. Mas o assassinato de Alcindo Monteiro aconteceu há 30 anos. O nazismo, o fascismo, o racismo, a intolerância são como um fogo subterrâneo, emergindo após décadas a queimar (quase) silenciosamente debaixo de nossos pés.
Este não é o momento para fazer arte, disse a mãe da fotógrafa Libuše Jarcovjáková enquanto os tanques russos ocupavam as ruas de Praga. Ainda assim, Jarcovjáková, no ímpeto dos seus 16 anos, pegou na sua câmara e foi para as ruas registar o que via; 21 anos depois ela estava em Berlim a registar a queda do muro que separava a cidade em duas partes. No início dos anos 40, o escritor austríaco Stefan Zweig e sua esposa Lotte fugiram das fogueiras nazistas e foram parar em Petrópolis, no Brasil, onde acabaram por se matar antes do fim da guerra. Zweig deixou uma carta que dizia: talvez os meus amigos vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite, mas eu, mais impaciente, vou embora antes. O casal foi sepultado no Cemitério Municipal de Petrópolis, de acordo com as tradições fúnebres judaicas, no perpétuo 47.417, quadra 11.
Em 1963 o encenador norte-americano Julian Beck perguntava: como fazer um teatro que seja digno da vida dos seus espectadores?
Hoje, 62 anos depois, eu consigo apenas responder: ainda não sei. Alinhavo estas histórias díspares como uma manifestação da minha perplexidade perante o mundo, não da minha compreensão. Parece que, mais do que nunca, tudo o que tenho a partilhar é esta perplexidade.
Há cerca de dois anos, Stella Rabello deixou-me uma mensagem a dizer que queria fazer um espetáculo sobre “o fogo, o genocídio, o planeta, as eleições, o fascismo, o luto pessoal e coletivo”. A voz de Stella é uma daquelas que já está firmemente enraizada dentro de mim. Comecei a escrever Queimada como se estivesse a ouvi-la ditar-me o texto, frase a frase. Comecei de um fio de memória, uma viagem pelo norte do Brasil há mais de uma década, da sensação de avançar pela auto-estrada rumo a um grande incêndio. Milton Santos disse que a paisagem obriga a olhar o passado porque é um palimpsesto, um documento com camadas manuscritas sobre camadas mais antigas. Eu escrevia como se estivesse não a criar, mas a revelar o que já existia enterrado naquela folha em branco. Como se fosse o branco não do início, mas do fim. Das cinzas depois de uma queimada.
Escrevi sem parar por semanas, empurrando com a barriga deadlines de trabalhos mais urgentes. Mais urgentes? Nada era mais urgente do que falar do fogo. Parecia que não conseguia pensar em mais nada, falar de nada que não fosse o fogo. Sonhei acordado as palavras deste texto enquanto lavava a louça, buscava as crianças na escola, participava de reuniões e ensaios, lia notícias que pareciam estar sendo alimentadas por meu incêndio interior. Poucas vezes escrevi tão assombrado, tão impregnado do que escrevia. Quando entreguei o texto à Stella, sabia que estava devolvendo-o à sua origem, que ela completaria o que faltava em mim (“completar o que falta em mim” é uma das maneiras de definir o amor, este fogo que arde sem ver).
E voltei à minha vida cotidiana.
Eu sabia que o fogo continuava a queimar, lá do outro lado do oceano. Stella partilhava impulsos, tentativas, convicções, iluminações. De vez em quando alguém me escrevia para contar que tivera o privilégio de assistir uma das leituras que Stella fazia na sala da sua casa. Até que chegou o dia, dois anos depois, em que Queimada foi apresentada para uma plateia cheia de gente, no mesmo Espaço Sérgio Porto que tantas vezes acolheu nossos descaminhos. Uma apresentação despida até os ossos – apenas Stella, um banquinho, um palco vazio. Para que mais?
Como tantas estreias dos Foguetes Maravilha nos últimos anos (com uma notável exceção), eu fiquei à distância, recebendo repercussões e fragmentos. Um destes fragmentos foi o vídeo em que Marina Provenzzano registou com o seu telemóvel o final deste acontecimento irrepetível (spoiler: tudo acaba a queimar).
PS. A apresentação de processo Queimada – estudo n.1 fez parte da programação da Mostra Movimentos de Solo.