LIVRO PARA LER ÀS ESCURAS
Lisboa, 21 de Março de 2022
Somos trinta e três aqui em baixo, trinta e três homens num buraco.
Um de nós é estrangeiro. Um de nós nasceu na mesma cidade natal do poeta Pablo Neruda. Alguns nasceram ao pé do mar. A maioria de nós nasceu ao pé deste buraco, assim como seus pais e avós. Muitos de nós não têm carteira de motorista. A maioria de nós nunca entrou num avião. Um de nós viajou clandestinamente num navio para o Brasil quando era jovem, passando onze dias escondido no interior de um bote salva-vidas, a beber água da chuva.
Um de nós tem uma tatuagem de Che Guevara no braço.
Alguns de nós escrevem poesias.
Alguns de nós já tiveram outros trabalhos: vendedor de CDs pirateados, mecânico de automóveis, colhedor de uvas, líder sindical, motorista de caminhão, topógrafo, varredor de ruas, operário de construção, marinheiro, guarda-noturno, enfermeiro, soldado de baixa patente, jogador de futebol com alguma notoriedade. Um de nós costuma fazer apresentações em festas, casamentos e batizados vestido à Elvis Presley, a cantar os sucessos do rei do rock: Blue Suede Shoes, Heartbreak Hotel, Suspicious Mind. Alguns de nós já estiveram na cadeia. Alguns de nós já viveram no que é comumente conhecido por pobreza.
Um de nós tem ensino superior.
Alguns de nós são alcoólicos. Alguns de nós usam drogas de maneira recreacional. Muitos de nós têm problemas pulmonares. Um de nós é diabético. Um de nós está à beira da reforma. Um de nós não tem todos os dedos. Nenhum de nós tem todos os dentes.
Um de nós vivia ao pé do mar a mil e trezentos quilômetros daqui até que um tsunami varreu a região com ondas de cinco metros de altura, arrastando casas, carros, pessoas, tudo. Um de nós lembra de caminhar pelas ruas cobertas de lama e destroços, após as águas refluírem, e ver um imenso barco de pesca largado no meio de rua como se fosse um brinquedo abandonado por uma criança cansada de brincar. Um de nós então viajou mil e trezentos quilômetros até o deserto (até este buraco) onde com certeza o mar não o alcançará.
Um de nós lembra que durante o desabamento, quando todos corriam desesperados (como ratos), viu um dos companheiros cair diante de uma massa de pedra que avançava com um rugido ensurdecedor. E um de nós voltou atrás, a sentir o chão liquefazendo-se sob seus pés, ergueu o companheiro e conseguiu carregá-lo até que estivessem em lugar seguro. E um de nós sabe que apenas voltou por medo de mais tarde ser acusado de abandonar um companheiro. E agora teme que os outros percebam que um de nós tem mais medo da vergonha que medo da morte.
Alguns de nós não conseguem dormir. Alguns de nós quando conseguem dormir têm pesadelos em que as paredes se fecham ao seu redor, pedras pontiagudas voam em todas as direções, o ar sendo expelido em alta velocidade pelos túneis faz os ouvidos sangrarem, uma poeira grossa cobre tudo (os olhos, as narinas, a boca) e não é possível ver ou gritar ou respirar. E é nesse momento em que alguns de nós acordam. E alguns de nós permanecem por muito tempo acordados no escuro, a sentir medo no meio de outros homens também acordados a sentir medo.
Mas alguns de nós passam cada vez mais tempo a dormir. Um de nós dorme e sonha com seus irmãos e tias e primos, e a irmã mais velha que o fez estudar depois que os pais morreram. Em seus sonhos ele vai a muitos lugares, em pequenas vilas e grandes cidades, e encontra familiares que não vê há muito, e senta-se nas salas de suas casas a tomar um mate. Então ele acorda e lembra que entre sua gente (os aymara), quando uma pessoa viaja a lugares distantes nos sonhos é porque está prestes a morrer. Esta ideia deixa-o triste por instantes, mas logo ele desliza para o sono novamente, e vê-se a caminhar pelo planalto junto às montanhas nevadas da sua infância, passando por cabanas, poços gelados, currais de lhamas e bodes, enquanto vê o sol a nascer no pico dourado do Illimani.
Alguns de nós lembram das histórias sobre a equipa uruguaia de rugby que voava para uma partida no Chile quando o seu avião se chocou contra a Cordilheira dos Andes. Vários passageiros morreram no acidente, outros morreram dias depois numa avalanche de neve. Não havia comida. Após algum tempo os sobreviventes começaram a comer os companheiros mortos, cozinhando tiras de carne em pedaços de metal da fuselagem do avião. Cansados de esperar pelo resgate, dois dos sobreviventes partiram a pé e após dez dias a atravessar vales e subir montanhas eles encontraram um vaqueiro que os socorreu e acionou as equipes de resgate. Alguns de nós pensam frequentemente sobre esta história.
Todos nós estamos a sentir fome.
Alguns de nós têm uma ideia: fazer uma pequena fogueira com restos de papelão e madeira, depositando sobre o fogo uma grande campânula de metal retirada de uma das máquinas, cheia de água. Despejar na água uma lata de atum e algumas poucas ervilhas. Esperar ferver, servir e comer esta sopa magra e deslavada, a estalar os lábios, comentar nunca haver experimentado nada tão saboroso, sentir-se subitamente humano novamente. Alguns de nós começam a rir, a fazer piadas, a sentir que o buraco não é tão fundo assim, a escuridão não é tão densa. Um de nós vai para o centro do círculo de homens sentados e dança, dança como se fosse uma odalisca desengonçada, dança como um xamã numa cerimónia esquecida, dança enquanto os outros batem palmas a marcar o ritmo.
Alguns de nós brigam entre si. Por ninharias, por antigos desacordos nunca totalmente remediados, por decisões que podem afetar a vida de todos naquele buraco. Dois de nós que até então sempre se respeitaram, discutem, trocam ameaças e insultos, dizem vamos resolver isto como homens. Os dois levantam-se com dificuldade e saem em busca de um local para resolver isto como homens, as luzes de seus capacetes a iluminar o túnel escuro. Mas a raiva se esvai juntamente com suas forças e ambos percebem que é absurdo lutar quando se está num buraco. Os dois amigos se abraçam e refazem com passos trôpegos o trajeto para junto dos companheiros.
Alguns de nós acreditam em deuses. Alguns de nós acreditam em energias mais ou menos antropomórficas. Alguns de nós acreditam que conseguem sentir a presença de todos os outros homens que já perderam a vida no buraco, imóveis e silenciosos como vultos anônimos numa estação de comboios, à espera. À espera de quê? À espera dos que estão quase a chegar.
Alguém pensa em Jonas na barriga da baleia. Alguém pensa em Edmond Dantés, aprisionado injustamente por 14 anos, que consegue escapar por determinação e engenho e prepara a sua vingança. Alguém pensa numa história sobre campos de concentração em que os prisioneiros eram ratos e os carcereiros eram gatos. Alguém pensa no explorador Ernest Shackleton e sua tripulação, presos num navio cercado pelo gelo, esmagado pelo gelo, engolido pelo gelo, a milhares e milhares de quilômetros de casa. Shackleton e sua tripulação salvam o que podem do navio (trenós e provisões e agasalhos e botes salva-vidas) e lentamente começam a viagem através do gelo.
Quando consideram a possibilidade de morrer neste buraco e seus corpos ficarem para sempre desaparecidos, a transformar-se lentamente em esqueletos descarnados, alguns de nós lembram que o regime do ditador Augusto Pinochet costumava enterrar os corpos de dissidentes em covas anônimas no deserto, para que nunca mais fossem encontrados e suas mortes permanecessem como feridas em carne viva para os familiares. E alguns de nós ainda lembram das histórias sobre centenas de presos políticos que foram trazidos para uma mina de sal desativada perto daqui, uma mina transformada em campo de concentração. Muitos destes presos morreram e seus corpos também foram enterrados no deserto. Mas muitos sobreviveram e anos depois puderam descrever como, mesmo naquele cotidiano de brutalidade e opressão, eles aproveitavam as noites límpidas do deserto para estudar astronomia.
Um de nós teve o pai assassinado pela ditadura. A sua mãe voltou a casar, e anos depois também o seu padrasto foi morto pela ditadura. Um de nós perdeu o pai num acidente de pesca. Um de nós perdeu o pai num acidente de mineração. Alguns de nós perderam o pai para doenças variadas, mas principalmente doenças pulmonares.
Alguns de nós têm mulheres fora deste buraco. Alguns de nós têm filhas. A namorada de um de nós está grávida (mas ele ainda não sabe disso). Um de nós tem a esposa e a amante a viver em casas vizinhas, uma a saber da existência da outra, as duas agora a disputar a primazia do luto, a insultar-se diante de todos, a arrancar cabelos uma a outra. Alguns de nós são violentos às vezes, mas depois se arrependem e juram que nunca mais, nunca mais. Alguns de nós prometem a si mesmos que se saírem deste buraco, vão se tornar melhores maridos, namorados, pais, amigos. Um de nós deu um abraço longo e pouco usual na esposa antes de sair para o trabalho na manhã do desabamento. Ao menos um entre nós promete a si mesmo que se sair daqui irá se divorciar.
Alguns de nós acreditam nos clichês da masculinidade: que homens não choram, não demonstram fraqueza, que são conquistadores, aventureiros, guerreiros e líderes, que o tamanho é que importa, que o lugar de mulher, que nem todo o homem, que quem paga as contas, que quem diz não, que um cavalheiro sempre, que as diferenças biológicas, que a espontaneidade, que o desejo, que a força, que o respeito, que a penetração, que o pau.
Alguns de nós lembram de todos os funerais que já foram. Alguns de nós lembram de todas as refeições que já fizeram. Alguns lembram de todas as pessoas que amaram, ainda que brevemente. Alguns lembram das trepadas mais extravagantes. Um de nós lembra de um desafeto que deve estar a gozar o seu desaparecimento, e este pensamento por algum tempo torna-se insuportável, e um de nós tem o impulso de sair cavando com as próprias mãos pela rocha, abrir caminho com os dentes e as unhas e o que mais fosse preciso, para que o desafeto não tivesse aquele gozo.
Muitos de nós pensam, “não é justo que isto esteja a acontecer comigo, justamente comigo entre todas as pessoas do mundo”.
PS. Antes do início dos ensaios de Subterrâneo, um musical obscuro, Felipe Rocha e Alex Cassal produziram uma série de textos reunidos num pequeno livro artesanal intitulado “Livro para ler às escuras”, entregue para a equipa de brasileiros e portugueses no primeiro encontro em Lisboa, em Abril de 2022. O espetáculo estreou no Teatro São Luiz em 08 de Junho deste ano.