O ENIGMA DO OUTRO MUNDO

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2022

Durante a escrita deste texto, eu mergulhei na dimensão sombria das teorias de conspiração, dos grupos radicais com projetos irreais (talvez) para reconfigurarem o mundo à sua própria imagem, das figuras messiânicas, negacionistas, dos terraplanistas, cientologistas, extremistas, luditas, aceleracionistas, supremacistas, eugenistas, xenófobos, trolls, incels, QAnons, neo-nazis, hooligans, personagens quase inacreditáveis com opiniões risíveis – pelo menos até serem alçados a uma posição de poder, quando então estas opiniões (e ações) tornam-se assustadoramente sérias.

Enquanto brincava de esborratar a fronteira entre ficção e realidade, eu pensava que sabia de que lado do campo eu estava a jogar. Eu estava no time da realidade comprovável e razoável, enquanto esta gente baseava suas crenças, perspectivas e discursos em teses fantasiosas e incoerentes. Esta gente construía obras toscas de ficção para explicar a sua versão do mundo. Mas lá pelas tantas eu comecei a me perguntar: e se a realidade estivesse com o outro time? E se tudo que eu acreditara durante a maior parte da minha vida fosse uma invenção? Eu conseguiria perceber a diferença?

O trabalho de toda a minha vida foi o de misturar a ficção com a realidade. Construir versões possíveis do mundo em que vivemos, mundos alternativos e visitáveis, como o Portugal dos Pequenitos. Enfim, não bem como o Portugal dos Pequenitos, vocês entenderam. Construir versões do nosso mundo, às vezes enquanto utopia, às vezes enquanto pesadelo. E ultimamente tenho a impressão de que os pesadelos estão a ganhar, estão a se tornar mais reais. Sei que neste exato momento, em salas de prédios em diferentes cidades do mundo, incontáveis grupos de pessoas estão diante de telas iluminadas a difundir uma realidade em que todos vivemos em um imenso disco achatado e coberto por uma cúpula transparente, observados permanentemente por entidades alienígenas que controlam nossos destinos. Uma realidade em que somos apenas cobaias inconscientes de experimentos baseados no medo, na desconfiança e na opressão.

Eu acredito que vivemos no mundo real, e que o mundo destas pessoas é uma ficção deformada. Mas o que me faz perder o sono à noite é isto: e se eles conseguirem convencer gente suficiente? E se a realidade deles passar a ser a nossa realidade, a única realidade, e todo o resto se tornar apenas uma ficção?

Mas pronto, não é preciso que também vocês percam o sono por causa disso. Tenho certeza que no fim tudo vai acabar bem. Um dos prazeres desta profissão é poder criar mundos que não são exatamente aquele em que vivemos, mas quase; e depois soltar estes mundos no mundo real e esperar que consigam crescer e se reproduzir em liberdade. Como um vírus, ou um fungo, ou um alienígena metamorfo que consegue passar despercebido entre os habitantes locais, como se de fato fosse um deles. Então é um tremendo prazer acrescido esta temporada lisboeta de inFausto a acontecer justamente no Centro Cultural de Belém, o local onde este espetáculo começou com um convite do extraordinário Jorge Andrade para recriar o seu “Fausto”. Imagino os espectadores desavisados que vão passar pela fachada monumental de pedra calcária à beira do rio, certos de que estarão uma hora e pouco confortavelmente sentados na plateia duma blackbox e depois poderão voltar ao mundo real, concreto, fiável. Mas aí é que se enganam.

Porque o mundo real não estará mais lá.

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