HAMNET
Lisboa, 02 de Maio de 2022
“That the things in life which don't go to plan are usually more important, more formative, in the long run, than the things that do.”
Maggie O'Farrell, I am, I am, I am: seventeen brushes with death
Estou aqui num quarto de hotel em Viseu a pensar: um encontro se constrói tanto sobre a presença quanto sobre a ausência. Li recentemente uma notícia sobre a escritora Maggie O’Farrell, que irá plantar duas mudas de sorveira (ou tramazeira ou cornogodinho ou escancerejo) num cemitério em Stratford-upon-Avon, onde estão enterrados William Shakespeare e sua família: Anne Hathaway, Susanna Hall, Judith Quiney e Hamnet Shakespeare. As sorveiras foram pensadas como uma homenagem aos gêmeos Judith (que morreu aos 77 anos) e Hamnet (que morreu aos 11). Embora saiba-se que seus corpos estão lá, não há lápides ou inscrições a marcar suas sepulturas. Emociona-me que quatro séculos depois desta fratura, uma escritora encontre uma maneira tão sensível de repará-la. A seguir penso que este é um ato que toca a nós, que estamos aqui hoje e lembramos, toca na minha sentimentalidade pós-moderna e não em Judith ou Hamnet. A fratura é irreconciliável. Mas o que sei eu? Sei que matéria e energia não acabam, apenas se transformam em outras manifestações de matéria e energia. E sei que estas plantas vão crescer no solo que agora é Judith e Hamnet e Susanna e Anne e William. É bonito e delicado, e bem precisamos de beleza e delicadeza nestes tempos.
Enquanto isso, lá vamos nós de novo, plantar pequenas mudas no solo fértil de uma biblioteca. Que alegria estar na presença de Estelle Franco, Gaya de Medeiros, Tomás Ribás, Sónia Barbosa, Roberto Terra, Rafaela Santos, Ana Seia de Matos, Guilherme Gomes, as equipas da Biblioteca Municipal de Viseu e do Teatro Viriato, e também Bruno Huca, Elsa Mencagli, Keli Freitas, Joana Frazão, Paula Diogo, Carlos Alves, Daniela Ribeiro, Vanda Cerejo, Catarina Saraiva, Andrea Sozzi, João Caiano, Marta La Piedad, Martim Santos, Tata Regala, Rui Horta, Paulo Pires, Guida Jordão, Rita Moreira, Cláudia Matos, (e outres que estou ignominiosamente a esquecer agora). Muita gente colocou matéria e energia neste projeto (para não falar de Ray Bradbury, Matilde Campilho, Homero, Alice Walker, Carolina Maria de Jesus, Ocean Vuong, Virginie Despentes, Clarice Lispector, Chimamanda Ngozi Adichie, Bruno Latour, Ailton Krenak, Caetano Veloso, Warsan Shire, Alberto Manguel, Baptiste Morizot, Svetlana Alexievich, Ana Martins Marques, Umberto Eco, Julietta Singh, Jorge Saramago e incontáveis outres).
Obrigado.
E obrigado, Henrique Figueiredo. Quero dizer que as frágeis peças da instalação foram impecavelmente embaladas e que os candeeiros estão em bom estado e que os livros todos chegaram às mãos de seus leitores. Está tudo bem.
PS. A Biblioteca do fim do mundo ocupou a Biblioteca Municipal de Viseu (em parceria com o Teatro Viriato) nos dias 06 e 07 de Maio de 2022.