DETETIVES PERDIDOS NO DESERTO
Lisboa, 06 de Dezembro de 2021
Nos primeiros dias de Setembro de 2008 eu embarquei num avião com destino ao México. Naquela altura eu estava a viver numa espécie de limbo, de estagnação existencial. Era como estar num aeroporto à espera de um voo de conexão que nunca chega, e eu já estava à espera por mais de dez anos, desde que eu saíra do sul do Brasil rumo ao Rio de Janeiro com o pau na mão e pouca coisa além disso, a esperar as grandes coisas que a vida me reservava. Mas tudo o que eu conseguira em uma década foi acumular uma pequena quantidade de livros que eu empilhava pelo chão do apartamento quase sem móveis, o apartamento do qual eu acabaria por ser despejado por falta de pagamento mas que por algum tempo foi um refúgio em que eu passava noites sem TV ou internet, a reler em loop aqueles mesmo 40 ou 50 livros que me davam força e tranquilidade para a enfrentar o cotidiano de cidade maravilha purgatório da beleza e do caos. O apartamento para onde voltei certa vez e descobri que durante a tempestade tropical tão inesperada quanto violenta que caíra à tarde a água entrara como se alguém tivesse passado horas a jogar baldes pela janela que eu esquecera aberta e agora a pequena quantidade de livros que eu empilhava pelo chão boiavam como baleias mortas, brancas e inchadas, e mesmo após dias e dias a secar livros ao sol, pendurados no estendal de roupas, e prensá-los com tijolos para que voltassem ao seu formato original, eles nunca recuperaram a aparência de livros que podem ser guardados numa biblioteca. Além de livros deformados, só acumulei naqueles poucos mais de dez anos uma vocação aparentemente irresistível para a desilusão amorosa e certa fama, entre os círculos mais descolados da dança e do teatro da Zona Sul carioca, de dizer coisas inteligentes e trabalhar duro nos projetos alheios.
Eu estava a embarcar naquele avião por conta de um Programa de Residências Artísticas para Creadores de Iberoamérica em México, após a estreia duma pequena peça que dirigi juntamente com um amigo, e decidimos fazer tudo e mais qualquer coisa que nos desse vontade, porque tínhamos a certeza de que o espetáculo resultante seria visto por algumas dezenas de pessoas e depois desapareceria sem deixar lembrança na memória curta dos nossos amigos. Na correria dos últimos dias até a estreia eu pouco tempo tive para prever o necessário para a viagem, e foi assim que me dirigi para o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, absolutamente despreparado para uma estadia de três meses em outro hemisfério. Eu limitara-me a jogar na mala todas as roupas mais quentes que eu possuía (não muitas porque o inverno no Rio de Janeiro raramente vai abaixo dos 18 graus), e uma coleção eclética de livros que achei que poderiam servir para a residência. Mas não importava. México, eu estava a ir para o México! Eu não sabia lá grande coisa sobre o México. Pancho Villa, Zapata, Zorro, os mariachis, um belo documentário e preto e branco de Serguei Eisenstein, “A Erva do Diabo” de Carlos Castaneda e alguns personagens dos desenhos animados era tudo o que me vinha à cabeça quando se falava em México. Mas eu sabia, sim, que o Programa de Residências Artísticas para Creadores de Iberoamérica em México ia enviar um grupo de compositores, coreógrafos e dramaturgos a uma cidade chamada Salamanca para que cada um trabalhasse em seu projeto pessoal.
Eu estava a ir para o México para trabalhar em um projeto meu, não um espetáculo alheio. Era tudo que eu precisava saber. Antes de partir tive tempo para visitar a página on-line do Centro de Artes de Salamanca, onde estaríamos alojados durante os 3 meses. Era um antigo convento colonial reformado, com um jardim de palmeiras e arbustos recortados entre colunas de pedra esculpida. Imaginei uma pequena cidade bucólica de casas brancas a rodear a bela construção, numa paisagem de colinas verdejantes, rebanhos de ovelhas com os seus badalos, zapatistas a cavalo a passar ao longe, trabalhadores em roupas brancas a discutir dramaturgia e revolução com artistas de toda a América. Eu sentia o limbo a ficar para trás, o meu futuro finalmente a levantar voo rumo a grandes coisas, atravessando a extensão nevada a perder de vista da Cordilheira dos Andes.
Após uma longa escala no Chile, e um segundo voo sentado ao lado de uma brasileira que falava sem parar sobre as compras que planejava fazer em Miami e Cancún, finalmente fomos despejados no Aeroporto Internacional Benito Juárez. Era novamente madrugada. A organização do Programa pedira-me que eu pegasse um táxi até o hotel que depois eles me devolveriam o valor gasto. Mas o pouco dinheiro vivo que eu tinha comigo já fora gasto a lanchar na paragem em Santiago do Chile, onde eu descobri ainda que o meu cartão do banco não funcionava no exterior. Claro que antes de embarcar eu não pensara em levantar dinheiro ou trocar dinheiro ou preparar-me minimamente para a chegada a outro país. Andei algum tempo pelos corredores do aeroporto, a experimentar o meu cartão em diferentes terminais de banco, sem resultado. Pensei em ligar para o produtor responsável pelos artistas – a cobrar – e explicar-lhe o meu impasse mas tive vergonha, ou tive orgulho, que são muito diferentes, mas às vezes parecem a mesma coisa.
Eu já começava a conformar-me em dormir em um banco do aeroporto (não seria a primeira vez) e ao amanhecer apanhar um autocarro para o hotel com as minhas últimas moedas, quando vi no chão à minha frente uma nota de dez dólares. Olhei em volta, e não havia ninguém que pudesse ter perdido o dinheiro. A nota estava dobrada, apanhei-a e estiquei-a. Eram mesmo dez dólares. Afastei-me dali a esperar o grito a interpelar-me, mas ninguém gritou. O taxista aceitava dólares, por supuesto. A Cidade do México à noite é linda, um desenrolar suave de grandes avenidas arborizadas e ruas estreitas com sobrados antigos, até a zona central de arranha-céus onde ficava o hotel. Não lembro quanto custou a viagem, mas ainda voltou troco.
No dia seguinte, os artistas internacionais foram arrebanhados para um pequeno autocarro que nos conduziu até nosso destino final. Mas de bucólica Salamanca não tinha nada. A cidade era pouco mais do que o dormitório de milhares de operários que trabalhavam nos imensos complexos industriais ao redor – fábricas de refrigerantes, tintas, produtos químicos, pesticidas. O ar tinha um cheiro permanente a peido. Ao nos aproximarmos dos arredores da cidade, já estávamos todos enjoados, alguns vomitavam. “Es solo durante los primeros días”, disseram, “luego uno se acostumbra”. O convento transformado em Centro de Artes de Salamanca era de fato uma graça, uma relíquia extemporânea pousada no meio de um labirinto de casas de tijolo sem reboco e lojinhas de comida ou roupas. Éramos sete artistas a viver ali: um brasileiro e uma brasileira, um argentino, um boliviano, um chileno, uma colombiana e uma uruguaia. Originalmente seríamos oito, mas a criadora espanhola se recusou a ficar em quartos partilhados, então foi colocada num hotel, e confirmou a má-impressão inicial que todos tivemos dela ao enfrentar os choques culturais inerentes àquela nossa convivência com a arrogância impermeável dos europeus esclarecidos, comprometidos e íntegros. Acabou por voltar mais cedo para a sua terra.
Mas nós outros, sete artistas díspares vindos de lugares e experiências radicalmente diferentes, ao final de um dia já estávamos confortáveis uns com os outros como se tivéssemos todos crescido juntos no mesmo bairro, a frequentar a mesma escola, a passar as férias nas mesmas praias. Éramos como um bizarro experimento social que tivesse dado certo, uma utopia latino-americana a encontrar cotidianamente formas de colaborar e contribuir na gestão dos tempos e espaços de trabalho, dos afetos, das demandas criativas, das crises, do ócio e da entropia inexorável que transformava garrafas cheias de bebida em garrafas vazias. E foi justamente em cima de uma mesa coberta de garrafas de bebida cheias e vazias, e cinzeiros e pratos com amendoins no único bar que ficava aberto à noite, o famigerado Nopal... Desculpem, uma digressão: o Nopal era uma tasca com espaço para não mais que três mesas com os mesmos bêbados todas as noites nas mesmas posições, como se fossem estátuas de fibra de vidro de alguma instalação, paredes forradas de cartazes de futebol, cinema e mulheres nuas, com uma jukebox que tocava rancheiras mexicanas e tangos argentinos e rúmbias e boleros e Mercedes Sosa e Violeta Parra e Gloria Trevi e até, incrível e maravilhosamente, Elis Regina, provocando lágrimas alcoólicas em brasileiros e não-brasileiros porque Elis Regina, né, é da América Latina, é do Mundo; e encostado à jukebox havia um urinol, como aquele do Marcel Duchamp. Mas este não era uma obra de exposição, e era nele que os bêbados de fibra de vidro por vezes iam aliviar-se sem o menor constrangimento, fazendo com que a colega uruguaia, de longe a mais fina de todos nós, se recusasse a colocar moedas para alimentar a jukebox por receio de levar com uns respingos de urina.
Foi sobre a mesa do Nopal que vi pela primeira este livro com um título curioso: “Los Detectives Salvajes”. De Roberto Bolaño. Perguntei se era uma história de mistério. Me responderam que sim, que era a investigação de um desaparecimento, mas também uma história sobre poetas e livros e desertos e a pobreza e a paixão, e um golpe militar e um conversível e um vestido púrpura e a contradição das vanguardas artísticas e borboletas-monarca e lutas de espada e ficção científica, e a adolescência, que é a coisa mais triste e maravilhosa que há, e sobre a impossibilidade que se é ser um latino-americano desterrado no México, mas também no Chile e na Nicarágua, Estados Unidos, França, Espanha, Áustria, Israel, África e Portugal, e sobre todos os lugares onde um livro pode ir.
E meus colegas latino-americanos contaram-me ainda que Bolaño foi um chileno que cresceu no México e aos 20 anos voltou ao seu país natal para ajudar a construir a revolução apoiando o regime socialista de Salvador Allende. E quando o General Pinochet esmagou o regime de Allende com tanques e bombardeamentos e prisões e execuções em massa e instaurou a ditadura mais sangrenta e repressiva deste período de ditaduras sangrentas e repressivas, Bolaño foi preso e escapou por pouco da tortura e provável morte porque os seus antigos colegas de escola eram agora os seus carcereiros e deixaram que ele escapasse, de volta ao México, onde escreveu nos anos seguintes a obra mais extraordinária, a rivalizar com os grandes, Gabriel, Julio, Octávio, Clarice, Jorge Luís, Mário Vargas, Isabel, e o gigante Juan Rulfo, claro.
Pedi o livro emprestado e comecei-o a ler naquela noite, quanto o jovem maestro boliviano ressonava suavemente na cama ao lado.
PS. Biblioteca do fim do mundo estreou na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen em Loulé, durante o Festival Verão Azul, em 12 de Novembro de 2021. Esta primeira edição apresentou as colaborações de Bruno Huca, Estelle Franco, Keli Freitas, Elsa Mencagli, Tomás Ribas, João Caiano, Marta La Piedad, Martim Santos, Tata Regala e Alex Cassal. Futuras apresentações reuniriam diferentes configurações de artistas.