PAISAGENS DE BOLSO
Lisboa, 22 de Janeiro de 2021
Após separar de meu pai, a minha mãe morou por algum tempo em um T-0 onde podíamos abrir a porta e pular imediatamente em cima da cama. E depois mudou para o apartamento onde ela moraria por mais de 30 anos, onde eu passei minha infância e adolescência, de onde parti aos 17 anos para viver no meu primeiro T-0 (primeiro de muitos), e para onde mais tarde voltei com a minha primeira mulher e nossos filhos. Era no último andar de um prédio comercial na Rua Dr. Flores, no mesmo quarteirão onde um prédio das Lojas Renner pegou fogo em 1976 e onde caiu uma marquise da Loja Arapuã em 1988, matando nove pessoas minutos depois que a minha mãe passara por ali.
De janelas deste apartamento se via os prédios do centro da cidade e logo a seguir o Rio Guaíba a estender-se até o horizonte, como uma espécie de colcha de retalhos de ilhas verdes e água castanha, que por vezes assumia uma coloração enganosamente azul ou prateada. No inverno uma neblina branca e densa cobria tudo e apenas se ouvia a buzina dos barcos a passar invisíveis. Por muitos anos eu tive sonhos em que estava no terraço, cercado por uma extensão plana de água que ia até o horizonte em todas as direções; ou via nuvens à distância, na direção de Canoas, a abrirem-se e despejar uma torrente de água sobre a cidade; ou olhava pela janela e uma onda gigante crescia acima dos prédios, acima do décimo-quinto andar onde eu estava, e mantinha-se ereta por um breve instante antes de desabar e acordar-me como no “Little Nemo in Slumberland” que meu pai tinha na estante do seu escritório.
Aprendi a trepar pelas grades da janela do apartamento até o alto da casa de máquinas dos elevadores, um quadrado de cimento com rachaduras nas quais nascia musgo e antenas de televisão enferrujadas, como se fosse um rochedo num mar de edifícios, uma ilhota onde numa noite em que houve um grande apagão em todas as luzes da cidade eu pude ver as estrelas da via láctea e meteoros a riscar o céu. O apartamento era construído como a nave espacial de “2001, uma odisseia no espaço”: um longo corredor que parecia uma coluna vertebral onde estavam acoplados os quartos, sala, cozinha, casa de banho; com um terraço ao fim, a fazer de cabeça, onde minha mãe cultivava flores e ervas comestíveis, onde no verão montávamos uma piscina de plástico com água a cheirar a pântano, onde passei muitas noites a balançar numa rede, de onde um gato saltou para a morte na tentativa de apanhar um pássaro.
O quarto de minha mãe, à porta do qual eu ia me sentar nas noites em que os ataques de asma não me deixavam dormir, à espera de que a minha respiração assobiante a acordasse para que ela pudesse cuidar de mim, era o maior quarto, mas era o único que não tinha janelas para o lado do rio. Um dia minha mãe mandou quebrar a parede cega e colocou ali uma janela redonda com vidros coloridos. Quando o sol batia naquele lado, projetava formas coloridas sobre a colcha da cama, azuis, verdes e laranjas.
Minha mãe morou neste apartamento até 12 anos atrás, quando então o vendeu e mudou-se para o Rio de Janeiro, vivendo até a sua morte numa sucessão de pequenos apartamentos em que não colocava quadros nas paredes porque não queria mais a chateação de tapar os buracos com massa quando se mudasse.
PS. Paisagem é o segundo espetáculo do projeto Sobre lembrar e esquecer idealizado por Paula Diogo.