LEVANTAR OS MORTOS

Lisboa, 13 de Abril de 2023

Comecei a pensar neste tema em 2016. Eu estava vivendo em Portugal e tinha acabado de criar um espetáculo para adolescentes sobre a crise europeia de refugiados. Eu mesmo um migrante recém chegado à Europa, via que a cada dia se tornava mais difícil a relação com o diferente: pessoas com outras crenças, outras línguas, outras cores, outros gostos, outras perspectivas.

Ao mesmo tempo a situação política no Brasil se tornava cada vez mais precária: em breve viria o impeachment da presidenta Dilma, o golpe institucional e a vertiginosa desmontagem das poucas conquistas sociais conseguidas nas ultimas décadas. Os embates entre visões diferentes de mundo estavam cada vez mais inflamados, as reações mais violentas. A ideia do apocalipse que vai nos engolir a todos (e destes monstros famintos e irracionais que devemos destruir para sobreviver) me pareceu então uma imagem adequada para falar do Brasil e do mundo. Uma fantasia que é ao mesmo tempo absurda e próxima, que se constrói sobre o nosso medo e nossa desconfiança, a sensação que há uma multidão à nossa volta prestes a atacar. E que a única arma de defesa é uma escopeta.  

Escrevi este texto numa espécie de febre, assistindo a fantasias apocalípticas como “O planeta dos macacos”, “A última esperança da Terra” e “Mad Max” mas também, claro, os filmes de zumbis de Danny Boyle, Lucio Fulci, Dan O’Bannon e George Romero; e lendo textos de Hannah Arendt, Peter Pál Pelbart, Judith Butler e Slavoj Žižek. Ao mesmo tempo, a televisão alimentava minha paranoia com figuras sinistras como Temer e Trump, terroristas e fascistas, robôs assassinos e mutantes contagiosos. Imaginei um espetáculo de teatro como uma conferência, com um grupo de especialistas que tenta agarrar-se a fiapos de civilização enquanto o mundo acaba lá fora.

E tudo isso, claro, foi antes do Bolsonaro e da pandemia.

Recentemente, a jornalista Alexandra Prado Coelho escreveu: "O medo é um vírus, está no ar, nas superfícies, nas pessoas que encontramos, em todo o lado. Para onde podemos ir quando o vírus está dentro de nós?" A resposta é "para o Teatro Ipanema, onde Felipe Rocha, Lucas Canavarro, Renato Linhares e Stella Rabello vão mostrar como sobreviver ao fim do mundo em Mortos-vivos: uma ex-conferência". O assunto é urgente, claro, mas o essencial é estar na presença vulcânica destes Foguetes Maravilha, justamente no teatro erguido por Ivan de Albuquerque e Rubens Corrêa no local de um barracão utilizado para ensaios e guardar cenários, e inaugurado em 1968, o ano que não terminou. Um palco que já foi pisado por Klauss Vianna e Jardel Filho, por Vanda Lacerda e Leyla Ribeiro, por Cazuza e pelo Asdrúbal, o espaço que já acolheu peças como “Hoje é Dia de Rock”, “O Assalto”, “Ensaio Selvagem”, “O Arquiteto e o Imperador da Assíria” e até mesmo um “O Beijo da Mulher-Aranha” traduzido por Dina Sfat e Paulo José. Um templo de vida e desejo que é o melhor dos lugares para comemorar a reinstauração democrática após uma longa temporada de trevas e desesperança.

Vai ser de levantar os mortos.

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