TRÊS ORFEUS DESACORÇOADOS

Lisboa, 31 de Julho de 2023

Assistir Study 9 / Vermelho é um bocado como participar dos Mistérios de Elêusis no interior do Grande Colisor de Hádrons (digo eu, que nunca estive próximo nem de um nem de outro): não percebo realmente o que está a acontecer, mas percebo que há poderosas forças invisíveis a trabalhara ali. Vou sendo carregado por mãos que sinto mas não vejo, seguindo a mistura do mito de Perséfone com as implicações físicas e emocionais de um transplante de coração, de canto polifónico com karaoke, de um espetáculo musical com uma instalação site-specific, de Anne Carson com Zé Celso Martinez Corrêa. Noves fora, María Ibarretxe construiu uma performance potente, misteriosa, sedutora, com doses imensas de inteligência cénica, capacidade expressiva e honestidade afetiva.

Isto tudo acontece com um mínimo de recursos técnicos, numa das pequenas salas de ensaios da Culturgest, onde os espectadores sentam-se em poltronas e sofás ao redor de pequenas mesas como se estivessem na sala de espera luxuosa de um hospital ou purgatório (o que dá no mesmo). O trio de performers move-se pelo espaço a seguir os raios de sol que entram pelas janelas, como sonâmbulos, num alheamento que ao invés de ser alienante é um convite a que também nós percorramos esta paisagem onírica, ao mesmo tempo sala de espera e a mais perfeita representação arquitetónica de um coração partido (uma heart-shaped-kintsugi box?). María Ibarretxe e Lucas Damiani entrelaçam as suas vozes de maneira absurdamente bela e envolvente, enquanto o registro mais grave de Victor Lattaque lembra-nos que afinal esta é uma história sobre as profundezas.

A dada altura pede-se que os espectadores escrevam em pedaços de papel frases começadas por “Eu quero” e “Eu não quero”, produzindo uma coleção multiforme de afirmações subjetivas, simultaneamente hilariante e tocante na amplitude do perímetro de experiências humanas que se estabelece, ainda mais quando são entoadas no ritmo irresistível de uma canção pop improvisada. Transformar os medos e os desejos dos espectadores em música, como é que não se pensou nisto antes? E ao ouvir na voz dos performers (como se fossem participantes do The Voice alçados a oráculos divinos) a emissão clara e forte do que segredamos nos pedaços de papel, sentimos que se confirma algo que já era do conhecimento comum: de que ao fim e ao cabo, os nossos desejos e medos são peças intercambiáveis de um mesmo jogo de montar.

Ao final, as portas do nosso confinamento se abrem e vemos María, Lucas e Victor a afastarem-se silenciosamente pelo salão revestido em tons de vermelho e dourado, até descerem as escadas e desaparecerem de nossas vistas como três Orfeus desacorçoados. A sensação que permanece não é de ter acabado de assistir uma performance, mas de acordar aos poucos, a lamentar que chegou a hora de abrir os olhos e enfrentar a luz dura do dia lá fora.

PS. Study 9 / Vermelho foi criado no contexto do PACAP – Programa Avançado de Criação em Artes Performativas, um projeto de criação/formação organizado pelo Forum Dança e dirigido a profissionais e estudantes de áreas artísticas que investem num período de experimentação avançada, conciliando a investigação, a criação e a apresentação ao público. Nesta edição, o PACAP teve curadoria de Sofia Dias & Vítor Roriz.

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