SILÊNCIO EM ALTO VOLUME
Lisboa, 14 de Setembro de 2022
O próprio nome da websérie já anuncia o seu vínculo com o momento presente: JÁ!
Em 8 episódios curtos, que nos convidam a assistir tudo de uma vez só, 7 bailarinos entrelaçam dança e discurso. A palavra fazer parte na dança já não é uma novidade tão grande assim, mas neste caso vê-se algo ainda raro: os bailarinos não estão falando, mas sinalizando em LIBRAS enquanto se movimentam. Alef Felipe de Souza, Juliete Viana, Liliane Bastos Cavalcante, Lucas Lima Guilherme, Luiz A. S. Amparo, Thayssa Araújo e Valesca Soares são pessoas s/Surdas e fazem parte da companhia de dança SOM (Arte Surda). Cada um dos episódios é dedicado a um dos bailarinos (com um episódio final que reúne trechos de cada coreografia individual), como uma espécie de cartão-de-visitas artístico, emocional, existencial. A surdez – ponto em comum entre cada um destes intérpretes – poderia ser também o foco principal das suas criações, mas o que de fato emerge ao assisti-los é o quão diferentes eles são entre si.
O cenário é o mesmo em todos os episódios: o jardim do Parque Lage à noite, iluminado como uma floresta de “Sonhos de uma noite de verão”. Um espaço mítico habitado por criaturas peculiares, a começar pelos figurinos (de Luiza Marcier e Júlia Roliz) que se equilibram entre trajes de super-heróis e as divindades do “Mahabharata”, os parangolés de Hélio Oiticica e o “Macunaíma” de Joaquim Pedro de Andrade, o Último Baile da Ilha Fiscal e as personagens de Maria Clara Machado numa peça de fim de ano do CIEP Elis Regina na Maré. O que vemos nos diz que a busca aqui não é uniformizar, mas destacar. É uma mistura de cores, volumes e texturas num panteão de corpos que também têm diferentes cores, volumes, texturas e gêneros e expressões e maneiras de se mover. Para mim é impossível olhá-los e não pensar “são corpos brasileiros”.
Também seus gestos falam sobre uma gama variada de assuntos: sexualidade, política, identidade, a própria dança ou apenas a descrição de uma festa de aniversário animada. Thayssa toca guitarra, mas não ouvimos o que está a tocar (a trilha sonora alterna momentos de silêncio e som). Lucas veste uma peruca loura e dança como que em um baile vogue. Alef “grita”, e as legendas traduzem para quem não entende LIBRAS: “Fora Bolsonaro”. Juliete é canhota, um detalhe banal que me faz pensar em tudo aquilo que há de individual e intransferível numa língua. A expressão dura do rosto de Liliane vai aos poucos sendo suavizada pelos seus gestos, como argila sob a água. Valesca oraliza algumas frases de uma canção, como uma memória, como um desejo. Luiz é um homem grande que parece flutuar nas nuvens, convidado a uma festa no céu que também pode ser um funeral (e o seu gesto final, mãos negras a desfazer-se entre as volutas prateadas do seu traje, é um dos momentos mais bonitos da série).
Cada um destes sete encontros breves e urgentes deixa-nos a impressão da quadridimensionalidade daquelas pessoas. Dá vontade de conhecê-las melhor. A diretora Clara Kutner vem de uma longa trajetória pela TV e cinema, pela dança flamenca, pelo teatro, e um pouco disto tudo parece estar presente no resultado: é eficiente, expressivo, sensível, inquieto. Assume um compromisso manifesto com o aqui e o agora. Convida-nos ao engajamento. JÁ! faz-se ouvir em alto volume.