A TEMPERATURA DE COMBUSTÃO DO PAPEL
Um dos episódios mais famosos de “The Twilight Zone” conta a história de Henry Bemis, caixa de banco e ávido bibliófilo, que sente nunca ter tempo suficiente para ler tudo que deseja. Até que uma guerra nuclear devasta o planeta, matando a todos – com exceção de Bemis, que passava seu intervalo de almoço no cofre subterrâneo do banco, imerso na leitura. Agora ele é o último sobrevivente de um mundo arrasado. Mas no momento mesmo em que considera encerrar a própria vida, Bemis depara-se com as ruínas de uma biblioteca pública. E no seu interior, pilhas e pilhas de livros ainda intactos; livros suficientes para uma vida e tempo para os ler sem interrupção. Um sorridente Bemis inclina-se para pegar no primeiro livro, mas tropeça, e os seus óculos grossos como fundos de garrafa estilhaçam-se no chão. Praticamente cego, Bemis chora desconsoladamente, rodeado pelos livros que nunca será capaz de ler.
Tendo eu mesmo 10 graus de miopia em cada olho, consigo me identificar com o desespero de Bemis. E também com o seu amor por livros e bibliotecas. Cresci no interior de uma biblioteca pública, onde eu passava meus dias explorando sistematicamente suas prateleiras, estante por estante, autor por autor. Foi talvez o primeiro lugar em que me senti a entrar nesta zona crepuscular, “uma dimensão tão vasta quanto o espaço sideral e tão desprovida de tempo quanto o infinito”. Um destes nexos de imaginação e partilha, que mais tarde eu encontraria também nas salas de teatro: um lugar que abrigava futuros possíveis. Por mais despretensiosa que seja, uma biblioteca é sempre a porta de entrada para uma miríade de universos paralelos.
Há bibliotecas em vilarejos e metrópoles, em prisões e em hospitais, em favelas e castelos, em navios de cruzeiro a atravessar os oceanos e em pequenos barcos a subir pelos afluentes do rio Mekong. Há uma biblioteca em órbita ao redor da Terra, na Estação Espacial Internacional, que inclui livros de Asimov, Darwin, Dostoievski, Verne. Havia uma biblioteca no campo de refugiados que foi consumido pelo fogo em Moria, na ilha de Lesbos. Em Kiev, Lviv e Mariupol na Ucrânia há bibliotecas que continuam a receber leitores e emprestar livros em salas subterrâneas enquanto as bombas caem na superfície.
E há a Biblioteca do fim do mundo, uma experiência que congrega bibliotecas de diferentes tempos e lugares; é como se fosse uma biblioteca feita com pedaços de outras bibliotecas. É uma biblioteca que funciona apenas fora do expediente, com as luzes desligadas para não atrair demasiada atenção e conversas em voz baixa para não perturbar os que precisam de descansar. Aqui todos são leitores, bibliotecários e livros ao mesmo tempo. A Biblioteca do fim do mundo é como se fosse um local de encontros íntimos temporários. Uma manifestação cívica. Uma cerimónia para falar com os mortos. Uma reunião de adictos em substâncias tóxicas. Um museu com os artefactos esquecidos de um mundo em que toda a gente desapareceu. Ou apenas uma biblioteca com todos os livros que conseguimos salvar do incêndio antes de aqui chegar. Não necessariamente os melhores livros, os mais importantes, os memoráveis, os necessários. Mas os livros que por acaso acabaram em nossas mãos enquanto nos encaminhávamos para este lugar.