ADORO A DECOLAGEM

Lisboa, 13 de Maio de 2024

Fiz esta peça de áudio a convite do Teatro-Cine Torres Vedras com a minha já conhecida falta de rigor técnico (e dramatúrgico), a contar umas histórias que todos vocês já devem ter ouvido uma ou mais vezes. Mas a vantagem de ser uma peça de áudio é que quem estiver a escutar pode apenas fechar os olhos e dormir por meia hora, a ouvir o som do autocarro. Aliás, a carruagem em movimento é um daqueles lugares onde sinto que a fronteira entre o despertar e o adormecer se dilui. Quando viajo costumo sonhar que estou a viajar, o balanço do veículo a traduzir-se em jornadas oníricas, corridas, fugas, perseguições, tentativas de chegar a um objetivo sempre inatingível. E quando acordo num lugar completamente diferente daquele que estava na noite anterior, é como se ainda estivesse a sonhar.

Perdi a conta das vezes que vi o sol nascer na estrada. E há algo nas viagens longas que ainda me encanta, mesmo que o corpo precise de cada vez mais tempo a recuperar-se deste enclausuramento. Mas tenho uma sensação de que uma viagem é uma espécie de limbo, uma pausa para respirar, imaginar, tomar decisões. Estar imóvel mas com o mundo a deslizar debaixo do meu corpo, impulsionado por uma força invisível, saber que independente do que eu faça eu vou chegar ao meu destino. E uma pequena faísca de esperança de que quando lá chegar eu já não serei o mesmo. 

Esta é uma peça sobre viagens. Uma grande parte da minha vida afetiva se deu em saguões de aeroporto, quartos de hotel e camarins de teatro. Lugares de passagem, lugares passageiros. A primeira vez que voei para a Europa, lembro de Gustavo Ciríaco sorrindo ao meu lado, dizendo "adoro a decolagem". E lembro daquele tempo suspenso, fora do mundo, falando sobre tudo e nada. Não lembro sobre o que falamos, mas lembro da sensação. É sobre esta sensação. E sobre o meu pai, Annibal Guimaraes de Barros Cassal, que gostava de viajar de autocarro.

Tenho saudades de viajar com ele.

PS. Esta peça é também o primeiro episódio de uma série que vai ficar muito, muito melhor depois, com as entradas de Gaya de Medeiros, Bruno Huca e Márcia Lança: Rádio Existência

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