NÃO PERDOA A QUEM MATOU

Lisboa, 15 de Abril de 2024

Este parece um ano particularmente apropriado para comemorar o 25 de Abril.

Porque as datas redondas sempre mexem com o nosso senso de simetria, porque o mundo está a pedir utopias libertárias, porque é um dia para os fascistas ficarem em casa a morder os nós dos seus dedinhos.

E na onda destas comemorações está a estrear mais uma das Antiprincesas, sete anos e sete espetáculos depois. Desta vez é a Catarina Eufémia, que morreu há setenta anos, que viveu breve e corajosamente e cuja morte tocou tanta, mas tanta gente de lá para cá. Tocou-me imenso conhecer a sua vida e a sua morte; acho que estou cada vez mais velho e sentimental. Mas acho mesmo que ver Cláudia Gaiolas a calçar as botas de Catarina é uma pequena manifestação, uma pequena libertação, uma pequena revolução.

Durante os ensaios passamos por canções de Sérgio Godinho, Zeca Afonso, Zé Mário Branco e da Brigada Victor Jara, por documentários de Sérgio Tréfaut e Thomas Harlan, pelos programas históricos da RTP, pelos experimentos pedagógicos de Paulo Freire. Um dia, Cláudia chegou no ensaio com umas canas para utilizar no cenário. As canas vieram da horta do seu avô, nascido no mesmo ano que a Catarina Eufémia, e que como ela também cresceu numa casa com chão de terra batida. Cláudia conta que além das canas pediu a enxada ao avô, mas esta ele não deu, porque continua a precisar dela para cavar e plantar e colher, mesmo aos 96 anos.

Esta história nos fez lembrar do “Torre Bela” de Thomas Harlan, que registou o processo de reforma agrária num Portugal que, após 48 anos de ditadura, começava a experimentar as dores de nascimento da redemocratização, os embates, as esperanças, as frustrações, as iniciativas falhadas. Uma das cenas mais emblemáticas do documentário coloca frente a frente o camponês José Quelhas e Wilson Filipe, um dos responsáveis pela ocupação da Herdade da Torre Bela e que tentava incutir nos trabalhadores a lógica cooperativista. Aqui, o pomo da discórdia era uma enxada que José não quer ceder ao coletivo:

Wilson: Qual é o valor da tua ferramenta? Qual é o valor da tua ferramenta?

José: Não sei.

Wilson: Tudo isto é da cooperativa. Não é tua, nem deste. Nem minha.

José: A minha ferramenta é da cooperativa e os outros que não trouxeram ferramenta nenhuma, nem querem trazê-las para não levarem descaminho, dão descaminho às dos outros.

Wilson: Isto tem o valor de 100 escudos. Vem para a cooperativa e a cooperativa dá-te 100 escudos e já não é teu. É meu, é deste, é de todo o mundo.

José: Eu é que trabalho com ela. Amanhã preciso de fazer trabalho naquilo que é meu, no bocadito que lá tenho e tenho que comprar outra. Depois essa outra fica a ser da cooperativa. Depois vou comprar outra e fica sempre da cooperativa. Daqui a nada, o que eu visto, o que eu calço, é da cooperativa.

Wilson: É isso, é isso mesmo.

José: Amanhã, tira-me as botas, fica a ser da cooperativa e eu fico nu.

Wilson: Se me dás licença, é essa a nossa finalidade. Tu não ficas com mais roupa do que a que tens.

José: Não vejo isso, não vejo nada disso.

São histórias como esta que nos lembram que o caminho até o fim da exploração do homem pelo homem é longo e pedregoso, e que faz falta uma enxada para completar o trabalho.

Mas hoje como há 50 anos, o que faz mesmo falta é agitar a malta.

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