A FINA PELÍCULA QUE NOS SEPARA

Liberdade, 30 de Janeiro de 2011

Em janeiro, participei do V::E::R 2011 - Encontro de Arte Viva, que reuniu cerca de três dezenas de artistas e pesquisadores na ecovila Terra UNA, em Minas Gerais. Foram dez dias conversando, criando e imaginando formas de trabalhar, da manhã à noite, numa convivência desafiadora. Foi uma experiência rica para pensar em colaboração e contaminação, para compartilhar perspectivas e friccionar desacordos.

Num evento que se propôs habitar um “terreno rugoso, impuro e mestiço, onde linguagens se cruzam e fronteiras se borram”, era de se esperar que a dança estivesse bem representada, e assim foi. Eu já conhecia alguns dos artistas que transitam pela dança contemporânea carioca, como a performer curitibana Michelle Moura, que depois do solo Cavalo continua a explorar as propriedades muito específicas do seu corpo numa dança quase expressionista, uma espécie de Mary Wigman quântica. Também há tempos venho acompanhando a trajetória entre artes visuais e dança de Michel Groisman, que espalhou por Terra UNA o seu vasto acervo de jogos que colocam as relações entre corpos no foco, como Polvo, Sirva-se e Instrumento de comunicação. A diretora e coreógrafa argentina Lucia Russo (parceira de Gustavo Ciríaco no lindo Eles vão ver) caminhou pelas ruas da pequena cidade de Liberdade - MG, investigando os relatos de seus moradores. E Jamil Cardoso levou para diferentes espaços (uma campina, um galpão de madeira, uma cozinha) o seu Working process, um solo sensível e multifacetado que confunde sua própria história com a história de outros.

Mas também conheci em Terra UNA artistas vindos de outros lugares, que também exploram o corpo em sua matéria, suas propriedades e suas consequências. E sinto o desejo de falar um pouco mais sobre duas destas pessoas: Júlia Pombo e Élcio Rossini.

Júlia Pombo é uma jovem artista carioca com uma produção recente de vídeos e fotografias concentrados no corpo, principalmente o seu próprio. Muitas dessas obras têm um claro sentido cénico ou performático, corpos em relação com o espaço, com o próprio corpo, com outro corpo. Como Máquina, um vídeo simples e preciso misturando corpos e engrenagens em movimento; ou a Série Introspectiva, estudo dobrado sobre si mesmo que me remete aos primeiros trabalhos da coreógrafa Alice Ripoll; ou Still, série fotográfica que é quase o resumo de um videodança, expressiva tanto na construção da imagem quanto no que deixa de mostrar.

Para Terra UNA, Júlia levou uma proposta de instalação - Desapego- em que ela trocava com os outros artistas objetos com valor afetivo. Cada objeto oferecido por Júlia vinha com uma pequena narrativa, "herdada" pelos novos objetos que foram aos poucos tomando o lugar dos originais. Um trabalho delicado e lento sobre construção de memória, sobre intimidade, sobre as histórias que nos definem, lembrando Christian Boltanski e Sophie Calle. E um trabalho que também me parecia falar de memória do corpo, um corpo ausente mas persistindo naquelas roupas, brinquedos, em um livro, em um caneca, nas fotos de um ex-namorado.

Élcio Rossini é gaúcho, um artista que eu já admirava desde a época em que ainda vivia em Porto Alegre, e que depois continuei acompanhando de longe em seus trânsitos entre artes visuais, performance, teatro e dança. Há anos a coreógrafa Cibele Sastre já me falava dos seus Objetos para a ação, parangolés imensos feitos de um tecido muito fino, que inflam ao serem manipulados, tornando-se uma espécie de tenda ou pára-quedas ao redor do corpo. É empolgante experimentar a riqueza de possibilidades de movimento destes infláveis, suas respostas inesperadas e envolventes, a sensação de "dançar" com o ar. Parece uma ferramenta incrível para pensar em contato-improvisação, no espectador-participante de Hélio Oiticica e Lygia Clark, nos poliedros de Laban, em tempo, em relação com o outro.

Outro trabalho que Élcio levou a Terra UNA foi a instalação Ora, bolas – balões transparentes cheios de água pendurados em fios de nylon, um imenso e cinético instrumento musical. Como os Objetos para a ação (e como nos jogos de Michel Groisman), é uma obra para uso que revela as suas possibilidades ao ser tocada, um convite à relação entre os corpos dos participantes. A fragilidade dos balões é um convite a testar os limites da fina película que nos separa de um banho de água fresca, ainda mais na tarde de sol forte em que experimentávamos a instalação. E foi assim, com alguns alfinetes, que a instalação se desfez em segundos, numa apoteose de gritos e jorros de água que ficou ressoando na minha cabeça como o final de um concerto.

PS. Organizado por Beatriz Lemos, Marcela Levi, Marcus Vinicius, Nadam Guerra, Domingos Guimaraens e Alex Cassal, V::E::R 2011 – Encontro de arte Viva foi a segunda edição de um evento que já havia ocorrido em 2005 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

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