OS CAVALOS TAMBÉM SE ABATEM

Rio de Janeiro, 16 de Novembro de 2010

É tão mais bonito o palco do Teatro Carlos Gomes despido de panos, coxias e varas de luz, descortinando a altura do seu pé-direito, a pobreza das suas paredes descascadas. Quando entramos na sala, Fábio Crazy já está em cena, pelado, carregando um tambor, com uma máscara de animal cobrindo a cabeça, girando ao redor do microfone colocado no centro do palco como um gato prestes a dar um bote. É uma imagem prenunciadora, com algo de ameaça bélica, algo de promessa lúdica ou erótica. É o gato de botas (no caso, tênis de corrida), a lebre atrasada, o lobo atrás da parede.

Todos os espectadores se acomodaram, as luzes apagam e voltam a acender. Surge no palco um grupo de seis homens e uma mulher, com roupas comuns, mascarados, fazem uma fila de frente para a parede, tiram roupas e máscaras e esperam. Nós esperamos também, ouvimos Schubert e latidos de cão, o ritmo do tambor de Fábio, e permanece a sensação de alerta, algo está prestes a acontecer, aqueles caboclos com remos presos ao corpo com fita de embalar vão se virar e avançar sobre a plateia como uma carga de cavalaria. Mas esta tensão é escandida, outros instrumentos se somam à fanfarra, facões riscados, cuíca, chocalho. É uma parede de frente para a parede, uma sensação de força contida, o paroxismo dos terreiros de candomblé, filas de jovens revistados pela polícia, os negros do Cacique de Ramos, os travestis da Glória. A permanência dessa situação destaca a distância entre eles e nós, como um corte intencional da nossa expectativa e da nossa cumplicidade, como se espiássemos uma festa (ou um ritual ou uma violência) pelo buraco na cerca.

Os refletores que iluminam esta cena estão ao redor do palco, presos precariamente com a mesma fita de embalar barata em pedestais e suportes com prolongamentos como varas de pescar improvisadas, os fios se emaranhando em gambiarras de aparência perigosa. Lembra aquelas soluções engenhosas, de uma feiúra assumida e fascinante, que encontramos nas periferias do Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Teresina. Penso nas razões para esta exposição de algo que costuma ser apenas funcional, a escolha de uma estética que assume a própria instabilidade como bandeira, como símbolo de potência.

Após um intervalo de tempo que parece longo e arbitrário, mas apropriado, o grupo larga os instrumentos, volta a colocar as máscaras mas não as roupas, e inicia uma corrida em círculos ao redor do palco. Começam a correr como um grupo coeso, que vai se separando até formar uma roda. Não há um investimento expressivo ou dramático na sua corrida – correm apenas. E assim vão permanecer por mais ou menos uma hora. Durante esse tempo, aparecem pequenas variações, imagens que se desgarram da roda e voltam a ela: um corredor imita um macaco, outro tira fotos, outro corre por um longo tempo com o braço erguido, a mulher segura os seios, um deles mostra o rosto, outro faz passos de dança. Coxas e peitos, paus e bundas, músculos e pêlos giram vertiginosamente, se sobrepondo, se confundindo, como os cavalos de um carrossel.

Aos poucos, bem aos poucos, os corpos se cobrem de suor. Cada corredor vai ganhando individualidade, uma individualidade estranha, mestiça entre corpo e máscara, corpos diferentes e máscaras diferentes, de animal, de mexicano, de tarado, de bate-bola, de demônio. Há tempo para olhar cada um dos corredores e perceber quem é mais velho, quem é mais gordo, quem corre de forma estranha, quem parece mais confortável. É uma imagem potente, humana, uma sensação de estar vendo o Brasil naquele redemoinho de força e desperdício, na corrida que se revela impiedosa, como as maratonas de dança em que casais se arrastam exaustos por um prêmio improvável. Vejo o Brasil no impulso brutal de estar em movimento para não morrer, nesta compulsão em fazer, manter, conseguir, ganhar, criar.

Parece um insulto aos que correm, mas é exaustivo para mim assistir essa maratona ali da poltrona, a sensação crescente de que aquela corrida não vai terminar, nunca. Sinto vontade de sair da sala, deitar no chão, beber água ou café, conversar com os outros espectadores, mijar, assistir de outro lugar. Tenho a sensação de estar sendo exigido, empurrado, alienado. Quis estar correndo também para ter algo para fazer, ou apenas não estar ali. Mas também tenho a sensação de que essa violência, esse cansaço, esse vazio, me concernem, não por culpa, mas por merecimento. No entanto, ao contrário dos corredores eu não tenho um eixo que ancore meu deslocamento, ou uma noção de fim. Parece que o próprio espetáculo questiona a minha presença ali, com a impermeabilidade daquela corrida, com o abismo entre aquele palco e a minha poltrona. Sinto que perco o ponto, que estou vendo uma instalação como se fosse uma peça em três atos, esperando consequências e conclusões onde há apenas um objeto pulsante desafiando a que extraiam algum sentido daquilo. 

Em alguma curva, quase sem perceber, me perdi do grupo que corria, e comecei a esperar que terminasse. As pequenas variações e as descobertas sobre cada corpo já me dizem pouco sobre aquela tarefa, sobre aquelas pessoas. É quase como as variações ao longo de uma pista de Fórmula 1, uma paisagem que se repete e que não tem importância para o resultado final. Os corredores voltam a se reunir em seu giro, mãos tocando os companheiros, braços sobre os ombros dos outros, e me lembro novamente de que há algo ali a ser dito, uma construção dramatúrgica que pretende, orienta, discerne. Pensei num lugar que não é cordial ou hospitaleiro, mas onde existem encontros que suavizam esta corrida de demolição. Quero entender mais coisas, receber mais, mas eu já não tenho fôlego, e o final vem como um alívio. Percebo que valeu a pena ter assistido até aqui, ter visto seus rostos sem máscaras marcados por cansaço, emoção, certeza, medo. Penso que ainda há algo para encontrar nesta corrida, um sentido para tanta crueldade consigo e com os outros (e digo crueldade não como algo ruim, mas como um potencial de realização, um vale de força). Saio com a impressão de ter visto algo poderoso e inacabado, bonito e disforme, importante e insuficiente. Algo que ainda não deu certo, como o Brasil.

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