DISTRAÍDOS VENCEREMOS
Lisboa, 02 de Setembro de 2018
Há dez anos Ele precisa começar estreava na Sala Multiuso do Sesc Copacabana, na Rua Domingos Ferreiras, a uns poucos metros do Edifício Master onde mais tarde eu moraria por um período breve mas memorável. Felipe Rocha e eu ainda não sabíamos onde aquilo ia dar, claro. Mas ao estrear, já havia o convite para uma segunda temporada no Teatro do Jockey, entre gatos, cavalos e gambás, e algumas apresentações no Gláucio Gil antes do final do ano, se não me engano. E quem sabe em São Paulo mais pra frente (foi onde o belo letreiro em néon com a palavra “hotel” partiu-se para nunca mais ser recuperado).
Há dez anos Felipe e eu ainda não sabíamos que a seguir andejaríamos pelo Brasil de cima a baixo, dormindo em aeroportos e sacolejando em rodovias esburacadas, carregando a mesa de pelúcia roxa e a lua chinesa de papel por lugares como Florianópolis, Jaraguá, Joinville, Rio do Sul, Lages, Chapecó, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Velho, Curitiba, Londrina, João Pessoa, Campina Grande BR, Cuiabá, Campo Grande, Dourados, Brasília, Fortaleza, Iguatu, Sobral, Juazeiro, Salvador e Manaus. Ainda não sabíamos que Stella Rabello nunca mais ia mais sair da nossa vida. E que Renato Linhares e Marina Provenzzano chegariam mais tarde e nunca mais iam sair da nossa vida. E que juntos seríamos tão alegres e desastrados como um episódio dos Trapalhões, que enlouqueceríamos uns aos outros e consolaríamos uns aos outros e brigaríamos e pediríamos desculpas-por-favor-eu-prometo-que-não-faço-mais e começaríamos tudo outra vez. Nem imaginávamos (como é possível!) que Tiago Rodrigues, Magda Bizarro, Paula Diogo e Cláudia Gaiolas já existiam em Lisboa, não sabíamos da farra maravilhosa, do Nelson Rodrigues, da luta com espetos, dos russos no espaço, dos tornados lusitanos, do apocalipse de mortos-vivos. Parece incrível, mas a gente não sabia nem do Temer nem do Trump. E olha que engraçado: a gente não ainda sabia da Lori nem desta pequena criatura que tem agora mais ou menos o tamanho de um mamão e que no início do ano que vem irá sair cá pra fora e mudar a vida da sua mãe e a minha para sempre.
Felipe Rocha e eu somos assim mesmo, distraídos. Deve ser por isso que estamos juntos há tanto tempo. Hoje parece óbvio que uma década depois da nossa estreia na sala multiuso do Sesc Copacabana, uns tais de Foguetes Maravilha estariam completando dez anos de existência, e convenceriam o Espaço Cultural Sérgio Porto a mostrar as peças antigas do grupo que ninguém mais aguenta ver (é o legítimo FEBEAPÁ). E então Felipe voltaria a sentar atrás da mesa coberta com pelúcia roxa e engenho por Aurora dos Campos, sob uma lua chinesa de papel pendurada por Tomás Ribas. E os espectadores viriam, como vieram há dez anos. E pouco depois do início do espetáculo, alguém bateria à porta do quarto de hotel, bateria repetidamente na porta do quarto, e Felipe iria abrir a porta para uma mulher, com uns 28 anos aproximadamente, um metro e sessenta e cinco de altura, um uniforme branco e azul claro, um avental de babados, um carrinho com toucas de banho e miniaturas de sabonete, um crachá no peito com o nome Fátima, a respiração arfante, os cabelos desfeitos, as meias sujas caídas pelos tornozelos, o olhar apavorado de quem acabou de voltar do inferno pra vir contar cá em cima os horrores que viu, implorando que deixe ela entrar, por favor, deixe ela entrar no quarto.
E ele deixaria.