GOLPE CONTRA A CULTURA
Lisboa, 07 de Junho de 2016
As declarações de Marcelo Calero (o ilegítimo Ministro da Cultura imposto pelo golpe de 12 de maio) são coerentes com o seu papel de fantoche político. Sobre a manifestação da equipe do filme “Aquarius” em Cannes, ele disse: "Acho ruim, em nome de um posicionamento político pessoal, causar prejuízos à reputação e à imagem do Brasil. (…) Estão comprometendo em nome de uma tese política, e isso é ruim. Eu acho até um pouco totalitário, porque você quer pretender que aquela sua visão específica realmente cobre a imagem de um país inteiro. Eu acho que a democracia precisa ser respeitada e acho que é um desrespeito falar em golpe de Estado com aqueles que viveram o golpe realmente, o de 1964. Pessoas morreram. E as pessoas esquecem isso. Então eu acho de uma irresponsabilidade quase infantil”.
Há aqui uma inversão meio maquiavélica, meio pateta. Ora, é justamente o desrespeito à democracia cometido por Michel Temer e seus cúmplices que está causando prejuízos à reputação e à imagem do Brasil. O filme de Kleber Mendonça Filho, ao contrário, recebeu elogios entusiastas e convites para ser exibido em mais de 50 países. Ao usar expressões como “posicionamento pessoal”, “totalitário”, “quase infantil”, Calero reforça o atual discurso de ódio contra os artistas (e contra a cultura) e entende que manifestações patrióticas denunciando o golpe são coisa de quem quer continuar a “mamar nas tetas”: comunas e vagabundos. E a tentativa de diferenciar o momento atual do “golpe real, o de 1964” tampouco é novidade: as pessoas que viveram naquela época lembram (talvez) que uma das coisas que a ditadura não admitia era que o golpe fosse chamado de golpe. Para um governo de exceção, o estado de emergência é o estado normal da sociedade.
Quando ataca artistas brasileiros para defender um regime indefensável, Calero assume o papel triste de Randal Juliano, radialista que em 1968, logo após o AI-5, acusou Caetano e Gil de “provocarem baderna” em seus shows e desrespeitarem o Hino Nacional, o que precipitou a prisão e o exílio dos músicos. Décadas depois, Randal disse em uma entrevista: “Se eu tivesse uma premonição qualquer, ou um aviso vindo de qualquer lugar desse mundo, de outro mundo, que os fatos aconteceriam da maneira como aconteceram, eu não teria feito aquele comentário”. Pode-se perguntar em que país ele vivia naquele incendiário ano de 68, mas também pode-se perguntar isso a respeito de muita gente hoje em dia. Calero assumiu um cargo recusado por pelo menos cinco mulheres (até onde sei, Marília Gabriela, Daniela Mercury, Bruna Lombardi, Cláudia Leitão e Eliane Costa) e foi logo afirmando suas lealdades com cara de pau e estômago de avestruz, chamando Temer de “grande líder” (o que até poderia ser uma referência irônica ao ditador norte-coreano Kim Il sung) e acusando os manifestantes nas sedes do MinC ocupadas lindamente em todas as capitais do Brasil de “danos ao patrimônio e uso de drogas”. Mais pra TFP que MPB (ou outra sigla qualquer).
E a curta atuação de Calero (e Temer) ainda consegue ecoar a França de Vichy, que fingia ser um governo mas apenas esquentava a cadeira para quem de fato tinha poder de comando ali: a Alemanha nazista. Durante este período, o lema nacional francês “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” foi substituído por “Trabalho, Família, Pátria”. No fundo, os lemas fascistas todos se parecem a “Não Pense, Trabalhe”.