COMEÇAMOS UM ENCONTRO CUJO RESULTADO É IMPREVISÍVEL
Lisboa, 25 de Julho de 2009
Começamos. Estamos os oito nesta sala, prestes a começar a trabalhar. Estamos repletos de expectativas, cicatrizes, angústias e meloas. Nesse momento, Felipe vai até a janela e vê que está nevando lá fora. Ele fala para nós: “olhem, está nevando lá fora”, o que nos causa muita impressão, porque estamos em Julho e raramente neva em Lisboa.
Vemos a neve caindo por algum tempo, é bonito, mas temos que trabalhar, então fechamos a janela e trabalhamos. Thiare propôs algumas coisas que estavam fixes, uma pessoa que perde a perna, algo com o sistema de incêndio do prédio, e uma maneira de utilizar as meloas. Perdemos a noção das horas que passavam, até que eu comentei “que estranho, está tudo tão silencioso”. E alguém disse que a neve provoca este efeito de abafar os sons.
Tiago, que estava a querer fumar, disse que ia descer um bocadinho para andar na neve, e os outros ficamos esperando na janela para vê-lo andar pela neve. Ficamos todos, menos Pedro, que foi ao banheiro.
Tiago apareceu lá embaixo já com um cigarro nos lábios, deu uns passos pela neve, e se inclinou devagar, bem devagar, e deitou de barriga na neve, o corpo numa posição curiosa, desajeitada, e ficou imóvel. Na neve.
Quando já estávamos a ponto de abrir a janela para aplaudir sua cena, Pedro volta à sala, dizendo coisas que não entendemos de imediato, mas conseguimos entender que não devíamos abrir as janelas. De qualquer forma estávamos todos preocupados com o estado emocional de Pedro, e por algum tempo não pensamos nas janelas ou em Tiago lá fora que demorava a voltar.
Até que Felipe lembra de perguntar “olhem, como demora a voltar o Tiago”. E Pedro disse, e desta vez todos entendemos perfeitamente, ainda que levássemos algum tempo para absorver a idéia: “Tiago está morto. Estão todos mortos”.
Agora já sabemos que a neve fora de época que caiu sobre Lisboa, e sobre o Brasil e sobre todos os outros lugares, matou aqueles que estiveram em contato com ela. E que muita gente morreu assim, saindo de suas casas, carros e escritórios para sentir aquela neve inusitada. E morreram nossas esposas e maridos, namorados e namoradas, filhos e filhas, amigos, colegas de trabalho, conhecidos distantes. Isso foi três anos atrás. Desde então a neve não parou de cair.
Gradualmente, a sobrevivência se impôs. Paula foi a responsável por conseguir que as sementes que tiramos das meloas brotassem no porão abaixo do palco. A criação de pombos se firmou aos poucos, e todos dizemos que eles sabem a frango, embora não seja verdade. No primeiro ano, Michel machucou a perna de forma feia e tivemos que cortá-la antes que a gangrena se espalhasse. Às vezes, por alguma razão, todos lembramos subitamente de Tiago, de seu esqueleto branco sob a neve branca, e ficamos um pouco tristes, mas também lembramos coisas que passamos juntos, e então rimos. E comemos meloas.
Fora isso, estamos todos bem. Agora, que a vida já se estabilizou nesta nova e estranha forma, vamos aos poucos retomando nossos hábitos antigos. Alguém, talvez eu mesmo, lembrou: “e aquele trabalho que estávamos a fazer?”. Resolvemos retomá-lo.
E então, aqui estamos. Começamos.
PS. Em final de 2008, Felipe Rocha e eu fizemos o espetáculo Ele precisa começar. Pouco antes ou depois da estreia, Felipe foi convidado por Tiago Rodrigues (diretor da estrutura Mundo Perfeito) para participar do projeto Estúdios no Teatro Maria Matos em Lisboa, no ano seguinte. A proposta era reunir quatro brasileiros e quatro portugueses para criar e apresentar três espetáculos em um período de tempo muito curto. Felipe repassou o convite para mim, Thiare Maia e Michel Blois, e em junho de 2009 desembarcamos em Lisboa. Foi quando conheci Tiago Rodrigues, Cláudia Gaiolas e Paula Diogo (Pedro Gil, que completaria o quarteto português, acabou não participando do projeto mas a presença de Magda Bizarro compensava o desequilíbrio no número de brasileiros e portugueses). Começamos sem ter nada pré-estabelecido, dispostos a seguir as propostas que aparecessem por mais estapafúrdias que fossem. Fizemos listas de idéias, incluindo números de magia, coreografias de musical, fantasias oníricas, peças russas e mortes em cena. Experimentamos uma ampla gama de exercícios, improvisos, leituras. Alguém escrevia um texto, outro propunha um futebol com meloas, ou um piquenique suntuoso utilizando os adereços de outros espetáculos do Mundo Perfeito. Continuamente misturávamos e fragmentávamos propostas. Quando decidimos que já havia material suficiente, votamos para decidir o que seria usado no primeiro espetáculo, construímos um fio de dramaturgia que unia tudo e estreamos Sempre. Ao mesmo tempo já estávamos a ensaiar o espetáculo seguinte, que seria dali a uma semana: Pedro procura Inês. E finalmente, na última semana, Bob Sands vai morrer Tatcher assassina. Os nomes foram todos tirados de pichações que Magda fotografara em muros e paredes de Lisboa, ecoando um projeto que se propunha a apresentar “três espetáculos sem rede, agarrados à energia do imprevisto, resultantes de um encontro cujo resultado é imprevisível”. Palavras proféticas.