PLANO B DO ESPAÇO TEMPORÁRIO

Rio de Janeiro, 30 de Março de 2008

“(...) o levante é o momento proibido, uma imperdoável negação da dialética – como dançar sobre um poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanística realizada num 'ângulo impossível' em relação ao universo”.

Surfando no tsunami cultural da internet, apoiado em um anti-marketing iconoclasta que serviu como uma luva para o vácuo utópico pós-anos 80, Hakim Bey tornou-se um inusitado best-seller com seu “T. A. Z. – The Temporary Autonomous Zone”, colocando conceitos instantâneos como terrorismo poético, caos lingüístico e anarquismo ontológico nas prateleiras do ativismo de esquerda. A idéia central de Hakim – combater o Poder criando espaços temporários de liberdade – recicla os manuais de guerrilha da luta armada, abrindo mão da revolução em troca do levante. O objetivo aqui não é mais a conquista do Poder, mas a construção de realidades paralelas, um território fluído que sobrepõe seu mapa tridimensional, virtual e ideológico à geografia plana, concreta e pragmática dos Estados.   

Não é fácil demarcar as fronteiras das zonas autônomas temporárias. As mesmas bandeiras são levantadas por exércitos que se opõem, os mesmos discursos são sampleados para que se desmintam mutuamente, o líder guerrilheiro de olhar romântico posa nas horas vagas para propagandas de produtos de limpeza. É uma guerra de agentes duplos e triplos, replicantes, clones, performers, hackers e spammers. Uma guerra que parece uma festa, um reality show, um espetáculo.

É sobre esta terra de ninguém que Thiago Granato e Cristian Duarte construíram o solo de dança Plano B.

“O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis à cartografia do Controle”.

Thiago entra no palco circular do teatro de arena sem ser percebido pela maioria dos espectadores. Carrega uma sacola barata de plástico e oferece a mão para uma pessoa da platéia, numa espécie de saudação ou convite silencioso à troca. Após um breve contato, repete o gesto para a pessoa seguinte, e a seguinte, tocando a palma de suas mãos e passando para o próximo espectador. Aos poucos, sua presença é notada. Os espectadores, já acostumados à interatividade da cena contemporânea, rapidamente reconhecem e aderem ao jogo proposto. Thiago passa a sua mão pela fileira de mãos que se forma à sua frente e começa a falar, instruções curtas e objetivas para que as pessoas o esperem já com a mão erguida, ou puxem a sua blusa. Acelerando o ritmo, ele completa uma volta pela platéia reinicia o círculo, agora falando em um microfone que tirou da sacola plástica.

Em minutos, Thiago engenhosamente adestra os espectadores a encenar o delírio da multidão de um show de rock, braços erguendo-se à sua passagem, mãos que tentam agarrá-lo. Novos elementos são anunciados e introduzidos: mudanças de luz, a batida do rock eletrônico que parece transformar o intérprete em um Jim Morrison robótico. E para completar a metáfora da comunhão popstar, Thiago distribui chocolates para os espectadores, colocando-os nas mãos que se oferecem ou atirando-os para os espectadores das últimas filas. E é no gesto de jogar um bombom que Thiago se imobiliza quando a música desaparece subitamente: pernas afastadas, um braço diante do corpo, o outro para trás, congelado no início de uma parábola, como que prestes a lançar um projétil para a platéia.

“A mídia nos convida a 'celebrar os momentos da nossa vida' com a unificação espúria entre mercadoria e espetáculo, o famoso não-evento da representação pura. Em resposta a tamanha obscenidade, nós temos, por um lado, o espectro da recusa (...) e, por outro, a emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer”.

Assim como Hakim Bey, o artista inglês Banksy tornou-se um astro do ativismo contemporâneo ao eleger a margem como terreno privilegiado e a oposição à ordem instituída como tema e ferramenta de trabalho. Os stencils de Banksy, geralmente paródias críticas sobre a polícia, o governo e a sociedade de consumo, passaram rapidamente dos muros de Londres para a internet e para o circuito alternativo de arte contemporânea – e então, irônica mas coerentemente, para o mercado milionário dos leilões de arte. 

As pinturas de Banksy utilizam o ataque-surpresa como estratégia de ocupação, suspendendo nossas expectativas rotineiras com o ácido nonsense das situações retratadas, como policiais em um apaixonado beijo homossexual, uma menina vietnamita ladeada por Mickey e Ronald McDonald, elefantes carregando bombas, ou um jovem de rosto coberto preparando-se para atirar um buquê de flores como se fosse um coquetel molotov.

Esta imagem – apropriadamente intitulada “Flower Power” – do militante prestes a jogar flores em um alvo invisível remete imediatamente aos violentos levantes dos banlieues parisienses e aos embates entre policiais e manifestantes no Fórum Econômico em Davos, mas também aos hippies colocando flores nos fuzis dos soldados americanos em Washington durante a guerra do Vietnã. Com sua mistura de signos, afirma-se como uma gag visual, mas também como um manifesto. O buquê de flores possui apenas um poder imaterial e efêmero, aparentemente insuficiente para se contrapor à hegemonia do Estado. No entanto, a capacidade incendiária do coquetel molotov continua presente, visível no impulso bélico do gesto, como se uma declaração de amor fosse tão efetiva quanto uma bomba – ou como se a bomba estivesse camuflada na declaração de amor.

 Em cena, o discóbolo apaixonado de Banksy parece se sobrepor e dobrar no corpo de Thiago, como uma imagem residual que não chega a se fixar, como um teleporte em loop. O microfone, que fora colocado no bolso de trás das calças durante a distribuição dos chocolates, continua ligado, e os pequenos movimentos de Thiago produzem sons de pano contra metal, pano contra carne, carne contra carne, até soar como o próprio corpo do intérprete sendo desmembrado. A imagem inicial do rebelde confrontando a platéia dissolve-se em uma movimentação que vibra entre a postura marcial e a languidez sensual, a compulsão techno e o escracho funk. O olhar do bailarino tem uma concentração vaga, que passa pelo que faz e pelos espectadores sem realmente ver. Puxa um lenço branco do bolso e com ele transita por posturas que sugerem manifestações com pedras, bombas de gás, slogans, rostos ao mesmo tempo ocultos e identificados por suas máscaras. O lenço branco não como um sinal de paz e sim como uma declaração de guerra.

Sem aviso, uma mancha vermelha brilhante surge no linóleo que cobre o palco. Thiago parece não perceber que deixou aquela marca no chão, mas a purpurina também suja seus dedos, seu braço, seu rosto. Sobrepondo-se à fricção do microfone no bolso, o som sujo de uma caixa de som em curto-circuito acompanha a trajetória do corpo em curto-circuito pela arena, sobrepondo e descartando ícones – molotov e ecstasy, caras-pintadas e David Bowie, passeatas e raves. Novas manchas sangrentas de purpurina surgem pelo corpo de Thiago, espalham-se pelo ar e pelo palco, como a performance de um Franko B carnavalesco. O som distorcido da caixa de som agora lembra uma sirene de ataque aéreo, Thiago torna-se um amálgama de poses e modelos, ora um soldado bósnio na campanha da Benetton, ora um ensaio narcísico de Mapplethorpe para a Vogue.

E todas as imagens retornam ao projétil prestes a ser lançado. O braço em um arco suspenso, o olhar em um alvo preciso. Mas o impulso não se completa, o alvo nunca é atingido, e o projétil continua como uma promessa ou uma ameaça. É tão contemporânea a impotência desse gesto que nunca se completa, mas já está pronto para ser incorporado, usado, reproduzido, formatado. Um gesto sem ideologia, à disposição para virar estampa de camiseta, pôster encartado na revista, comercial no intervalo da novela, tema para matéria no caderno de cultura. Um coquetel molotov vendido em supermercados.

A provocadora manifestação de Thiago Granato e Cristian Duarte ergue barricadas de significados e as derruba logo a seguir. Produz efeitos espetaculares para esvaziá-los, disseca a cena com sangue-frio científico e remonta os pedaços imprimindo-lhes uma imitação de vida. O corpo jovem, disponível, arrogante, indiferente e monstruoso do intérprete seduz e afronta a placidez bovina dos espectadores, transforma a própria platéia em uma metáfora sobre a mitificação do artista, sobre a mitificação das imagens, mitificação que cria zonas mais temporárias que autônomas. Thiago e Cristian dão aos espectadores o que eles desejam, mas cobram por isso.

“A História diz que uma Revolução conquista 'permanência', ou pelo menos alguma duração, enquanto o levante é 'temporário'. Nesse sentido, um levante é uma 'experiência de pico' se comparada ao padrão 'normal' de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias - ou não seriam 'extraordinários'. Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã retorna - uma pessoa não pode ficar no telhado para sempre - mas algo mudou, trocas e integrações ocorreram - foi feita uma diferença”.

PS. Todas as citações extraídas de “T.A.Z – The Temporary Autonomous Zone” de Hakim Bey, com tradução de Patricia Decia e Renato Resende.

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