ZONA DE CONFRONTO
Rio de Janeiro, 09 de Fevereiro de 2014
Há muito tempo eu não saía de algum trabalho de artes cênicas com essa sensação: “isso é importante, as pessoas têm que conhecer isso”. Os trabalhos do Núcleo do Dirceu de Teresina, me dão essa sensação. Mais recentemente, “Pindorama” de Lia Rodrigues e “Intimacy” dos australianos do Ranters Theatre também me deram essa sensação. E voltei a ter essa sensação nas duas vezes em que fui ao Centro Cultural Hélio Oiticica assistir Cosmocartas: isso é importante, as pessoas têm que conhecer isso. Porque trata do nosso lugar no mundo, nossa relação com o outro, nossa percepção de nós mesmos, questões fundamentais pra continuarmos existindo como indivíduos e como comunidade. E o espetáculo de Renato Linhares não se limita a discursar sobre estas questões, num recorta-e-cola de citações e autores (que é a minha maneira de escrever, não sei se já perceberam), mas as incorpora sinestesicamente na forma e no conteúdo do trabalho, transforma esta questões em outras questões, em afirmações, em movimentos, em ambientes, em experiências imersivas.
Cosmocartas estava instalado no Centro Cultural Hélio Oiticica, aquele prédio tão bonito, tão apropriadamente instalado entre o Saara e a Praça Tiradentes, entre panos baratos e prostitutas, trabalhadores e bêbados, prédios históricos e ruínas anônimas. Um espaço público pouco utilizado que durante os meses de temporada voltou a ser frequentado por uma gente curiosa vinda de lugares diversos. Da primeira vez que fui assistir Cosmocartas, um daqueles temporais furiosos e eufóricos tão comuns ao Rio de Janeiro transformou as ruas do centro da cidade em rios que arrastavam sacolas de supermercado e chinelos, e que atravessávamos com água pelos joelhos torcendo para não pisar numa ratazana. E ainda assim o espaço estava lotado de espectadores que riam e torciam roupas e cabelos enquanto esperavam o início do espetáculo.
Primeiramente, fomos convidados a entrar em uma pequena sala imersa numa penumbra avermelhada, com dezenas de redes penduradas. Nesta auto-identificada Zona de Conforto assistia-se a dois vídeos projetados nas paredes, uma espécie de introdução subjetiva e afetiva dos performers Cristina Flores e Álamo Facó ao universo de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Estes vídeos já deixam claro que Cosmocartas não se pretende um documentário ou uma biografia sobre os seus personagens, mas sim uma amalgama de personalidades, linguagens, imagens referenciais. O vídeo de Cristina retrata Lygia por afinidade, ao entrelaçar arte e subjetividade, Jorge Selarón e CEP 20.000, peitos desnudos e política, poesia concreta e diário pessoal. Já o registro de Álamo parece buscar a construção de uma estética sensível, na maneira de falar e mostrar o corpo; na escolha dos cenários evocativos do Rio de Janeiro, o mar e a favela; no olhar generoso para o outro.
Após esta espécie de tutorial que nos prepara para o que vamos experimentar a seguir, passamos da Zona de Conforto para uma sala maior, com colchões espalhados pelo chão e alguns objetos atirados numa ocupação espacial enganosamente simples, que depois vai se revelar um pentimento intrincado de camadas cenográficas e arquitetônicas. Os espectadores escolhem o seu lugar sem indicadores de orientação cênica que digam para onde olhar; Álamo e Cristina já estão em cena, numa atitude ambígua, entre cá e lá, conscientes da entrada do público, mas aparentemente engajados na construção de um estado.
Nesta sala, onde vai acontecer a quase totalidade de Cosmocartas, vemos de maneira mais explícita a presença dos artistas já mortos e consagrados que são o mote para o espetáculo. Álamo e Cristina estabelecem um diálogo (que por vezes se transforma em monólogos em sequência) entre si e com os espectadores, alternando-se sem aviso ou pudor entre falar em nome de Hélio & Lygia e em seu próprio nome, mesclando questões e interesses, memórias e investimentos. Esta dramaturgia engenhosa excede a mera exumação de vidas e obras, mas despeja o material de pesquisa num caldeirão fervente que o torna presente e vivo. Assim, os anos 60/70 e o meio das artes visuais é transformado em base para um espetáculo teatral da segunda década do segundo milênio. O elogio mitificador tão comum a trabalhos que ressuscitam celebridades – como se imitar perfeitamente cacoetes externos de pessoas mortas fosse suficiente – não faz sentido aqui, porque Álamo e Cristina não buscam apagar suas próprias personalidades para dar passagem a Hélio & Lygia, mas sim utilizá-los como combustível para explorar suas próprias personalidades.
O diálogo emaranhado, prolixo e errante nos informa que, mesmo quando se fala em personagens e acontecimentos passados, é do presente que se está falando ali. É como se as referências exercessem uma função afetiva, como na magia simpática, como nas conversas entre velhos amigos, como Caetano com suas letras cheias de nomes e cores. O drop-name como que organiza as bordas do acontecimento cênico, de um espaço que não é só físico e narrativo, mas sensorial, evocativo, comunal. É como se as peças feitas por Hélio & Lygia para serem habitadas/manipuladas (como os parangolés e bichos que já alcançaram o estado de “obras de museu”, tristemente penduradas em paredes ou fechadas em vitrines de vidro, alijadas do toque humano que lhes dava vida e sentido), fossem recriadas com palavras, com nomes de pessoas, lugares, coisas. Recriadas, e não reproduzidas.
Os espaços vazios também têm uma função na estrutura do Cosmocartas. As lacunas, as elipses, os esquecimentos intencionais ou não. O que sabemos e completamos. O que não sabemos e fica assim, inacabado, não-conciliado. A ausência que convida a ser preenchida. Como quando Cristina entoa uma sucessão de vogais, que aos poucos vai sendo preenchida pela carne da música até tornar-se compreensível, tornar-se a bela “Me deixe mudo”, de Walter Franco. E que emoção particular senti quando na última apresentação da temporada parte considerável do público cantou junto com Cristina. As pessoas ainda lembram de Walter Franco! Enquanto isso Álamo, na atuação mais poderosa que já vi deste ator tão jovem e tão intenso, navega por uma presença macia e rascante, sedutora e incômoda, entregue e consciente. Dá gosto de ver. Diante de Cristina e Álamo, vemos o quanto cada um se apropriou do seu personagem, do espetáculo e de si mesmo; e vemos mais um exemplo da habilidade de Renato Linhares em extrair atuações transformadoras de seus intérpretes, como no “Museu da Caça e da Natureza”.
É apropriado também que um trabalho sobre dois artistas que tanto dialogaram com o seu tempo não se ocupe com análises e discursos sobre o passado, sobre a-maneira-como-as-coisas-eram-feitas. Cosmocartas dialoga com o Brasil em que vivemos agora, fala com voz alta e provocadora, trazendo à tona as contradições deste país escravagista e operário, sensual e puritano, ingênuo e cínico, sambando em meio à torrente de água da chuva que arrasta para o mesmo esgoto tanto o lixo quanto a purpurina, tanto as celebridades mortas quanto os corpos jovens que tentam extrair ainda algum sentido e algum prazer desta quarta-feira de cinzas.