DAR-SE-Á NELA TUDO POR BEM DAS ÁGUAS QUE TEM

Rio de Janeiro, 17 de Março de 2014

“Esta terra, Senhor, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Traz ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra, por cima, toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia parma, muito chã e muito formosa; pelo sertão nos pareceu do mar muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão a terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.”

Carta de Pêro Vaz de Caminha, 1 de Maio de 1500

Que alegria assistir Pindorama, esse acontecimento humano em potência plena, que transforma o cimento duro e belo do Centro de Artes da Maré em rio caudaloso, enchente, cachoeira, mangue. Foi talvez a primeira vez que retornei à Maré após encerrar o meu trajeto de anos trabalhando com crianças desta região através do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. Como chegamos cedo, dado o desconto do trânsito previsivelmente imprevisível da Avenida Brasil, fomos passear, subindo pela rua Sargento Silva Nunes até a sede da REDES, esperando encontrar algum colega, algum aluno que eu não mais reconheceria, já seria quase um adulto. E este passeio pelas ruas da Maré, com seus cheiros e cores, sua sujeira e seu encanto, pareceu ser um prólogo mais que perfeito, um ajuste de pressão para o mergulho que íamos empreender logo mais no galpão de paredes caiadas, idêntico a outros tantos naquela esquina tão peculiar e tão comum de uma das maiores cidades do Brasil.

Como outros espetáculos de Lia Rodrigues com a sua companhia, Pindorama equilibra-se entre uma construção coreográfica com eixos formais muito claros e um desejo-manifesto de dialogar com este tempo e este lugar, de entender quem somos, de que somos feitos, como podemos viver juntos quando tudo ao nosso redor parece apontar para a separação, o distanciamento, o exílio. Talvez seja uma das construções mais eficientes de Lia na abordagem dos seus assuntos recorrentes - brasilidade, singular x coletivo, o desvelamento do corpo e da ação. É bonito ver que a companhia se renova e amadurece, com rigor maníaco e engajamento apaixonado na construção de suas imagens. Tanto os pequenos balões de água espalhados pelo piso como medusas deixadas na areia pela maré vazante quanto as ondas furiosas que engolem os corpos dos bailarinos impressionam pela precisão e pela pertinência. É apenas plástico, material de construção e de embalagem, material barato e inerte, mas que ao mesmo tempo está vivo. Está vivo porque aqueles corpos estão vivos.

Pindorama é um nome prenhe de significado, ao retornar o território urbano à sua origem Tupi, lembrando-nos que isto aqui já foram florestas e rios (de janeiro), que aqui viveram gentes e bichos antes de chegarem as caravelas e os homens brancos, os colares de contas e os espelhinhos, os padres e as armas, as doenças e os títulos de propriedade, a escravidão, o extermínio, o colonialismo, o imperialismo, o capitalismo. Que este paraíso perdido, esta terra livre dos males, este Reino da Cocanha com rios abundantes de leite e mel, este jardim sagrado dos persas com uma fonte como um umbigo ao centro, esta heterotopia onde cabemos todos; já foi de todos antes de ser só de alguns, de poucos. Porque os homens brancos têm este poder de reduzir águas infindas a gotas esparsas.

Mas Pindorama é bonito porque afirma a vida não como resistência, não através das lentes nostálgicas de um bom selvagem, mas como transporte, transbordamento, revolução, maré cheia que leva tudo no arrasto. A obra aqui não é de infraestrutura: mais do que represar as águas, quer fazê-las brotar do chão seco. Quando os balões de água afinal se rompem, experimentamos a emoção de quem sente a chuva a cair após uma temporada demasiado seca. Ao ver os espectadores que enchiam o galpão do Centro de Artes da Maré tirando os sapatos para pisar o cimento molhado, eu lembrei da última cena de "Aquilo de que somos feitos", em que os bailarinos se agitavam como peixes sufocando fora da água, embatendo seus corpos nas nossas pernas. O final de Pindorama, com seus seres úmidos e vulneráveis mas afirmativamente vivos, me atualiza essa imagem de quase 15 anos atrás e oferece um contraponto à triste onda reacionária que enlameia o Brasil.

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