ESQUECENDO DE ALGUMA COISA MUITO IMPORTANTE
Rio de Janeiro, 29 de Abril de 2012
Xuxu.
Fiquei pensando nos nomes. Gosto da ideia do “Gabinete Mnemônico de Trejeitos”, mas não sei se é exatamente esta a melhor imagem. Pensei em algo como “Vocabulário Mnemônico Incompleto”. Ou “Complemento Metaonírico à Teoria dos Gestos”, a partir do “Complemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos”, um artigo de Sigmund Freud publicado originalmente em 1917. Luan me disse que Freud chama de “condensação” quando um personagem no sonho funde diversas pessoas ou ideias diferentes. E “deslocamento” quando uma imagem assume o valor de outra. A partir desta conversa com meu filho erudito, fui ler alguns artigos sobre a teoria dos sonhos freudiana. Boiei absolutamente, é claro, mas a terminologia científica em um assunto com tanta subjetividade é engraçada. Eu nem chego a compreender completamente o que estou lendo, mas aprecio pelo sabor que as palavras ganham, como neste trecho “O Eu e o Id” de Freud:
“O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se percepções tanto externas quanto internas. Ele é visto como outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna. O ego é, acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente um ser de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”.
Ao mesmo tempo estou relendo “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” de Oliver Sacks, um autor sempre com muita coisa instigante sobre memória. Por exemplo:
“Ele não se recordava de coisa alguma por mais de alguns segundos. Vivia desorientado. Abismos de amnésia abriam-se continuadamente sob ele, que os transpunha, agilmente, por meio de fluentes fabulações e ficções de todo o tipo. Para ele não eram ficções, mas o modo como ele subitamente via, ou interpretava, o mundo. O fluxo radical e a incoerência desse mundo não podiam ser tolerados, reconhecidos, por um instante – havia, em vez disso, essa estranha, delirante quase-coerência, enquanto ele improvisava continuadamente um mundo à sua volta, com suas invenções incessantes, inconscientes e velozes. Uma fantasmagoria, um sonho de pessoas, figuras, situações sempre em mudança; mutações e transformações contínuas, caleidoscópicas. Mas para ele não se tratava de ilusões mutáveis e evanescentes, e sim de um mundo absolutamente normal, estável e concreto. Um paciente desses precisa praticamente inventar a si mesmo (e a seu mundo) a cada momento. Cada um de nós tem uma história de vida, cuja continuidade é a nossa vida. Cada pessoa constrói e vive uma narrativa, e a narrativa é a pessoa. Para sermos nós mesmos, precisamos rememorar a nós mesmos. Um homem necessita dessa narrativa para manter sua identidade.”
E pra acabar, lembrei ainda da autobiografia de Luis Buñuel, “Meu último suspiro”:
“É preciso perder a memória, mesmo que a das pequenas coisas, para percebermos que é a memória que faz a nossa vida. Nossa memória é a nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação. Sem ela, somos nada. (Só posso esperar pela amnésia final, a que pode apagar toda uma vida, como fez com a de minha mãe...)”
Mudando de assunto, mioclonia noturna é o nome daquela sensação de queda que falei. Gosto da ideia de explorar o momento entre o sono e o despertar, em que os dois mundos se confundem, se sobrepõem. E também a ideia de imagem residual, a impressão vaga e às vezes enganosa deixada por algo que vimos. Como reconstituir o acontecimento passado a partir de vestígios desconexos e incompletos? Pensando nisso, escrevi mais um relato pós-apocalíptico:
Eu olhei ao meu redor e tudo estava em ruínas. Eu sentia um cheiro de plástico, de carne, de eletricidade. Eu comecei a andar entre as coisas que estavam jogadas ali, pilhas de sapatos, de roupas, de óculos, de documentos. Eu vi uma máquina de escrever, um carro partido ao meio, um pássaro empalhado, rolos de filme, aparelhos de telefone, televisores, sementes, frascos vazios de remédio, álbuns de fotografias, bonecas, arquivos enferrujados, casacos de couro, prateleiras cheias de livros escritos em uma língua que eu não conseguia ler. Outras pessoas vagavam por ali como eu, procurando alguma coisa no meio dos escombros. Pareciam perdidas. Como se alguém tivesse morrido, alguém conhecido por todos. Como se o seu time tivesse perdido o campeonato. Todos estavam cobertos por um pó branco. Vi meu reflexo em uma vitrine estilhaçada, e eu também estava coberto de pó. Eu não me reconhecia. Não lembrava o meu nome, nem o que fazia ali. Eu sentia que estava esquecendo de alguma coisa muito importante. Pensei em perguntar às outras pessoas, mas ninguém olhava para mim. Então eu acordei.
Por enquanto é isso. Tenho ensaio agora com Chacal e depois uma reunião. À noite estou livre, se você quiser falar mais.
Beijos
PS. No fim das contas, o nome permaneceu apenas 100 Gestos mesmo. Tanto barulho por nada. Mas não é isto mesmo que constitui o processo de criação artística? O espetáculo resultante de quase dois anos de ensaios estreou em 06 de Julho de 2012 no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Rio de Janeiro.