PRIMEIRO EU VOU PEDIR PARA VOCÊ FECHAR OS OLHOS

Rio de Janeiro, 07 de Abril de 2015

Primeiro eu vou pedir para você fechar os olhos enquanto eu falo com você. Você pode fechar os olhos e continuar com eles fechados até eu pedir para abrir? Agora eu vou pedir para você começar a pensar. Não precisa fazer mais nada, só pensar.

Pense em um copo d’água. Pense em uma folha branca de papel. Pense em uma parede branca. Pense em um prato de comida. Um prato de carne. Uma mosca sobrevoa a carne. Pense em um cachorro. Um cachorro comendo a carne. O rabo está abanando enquanto ele come. Pense em uma matilha de cachorros andando pelas ruas de uma cidade vazia. Papeis voando pelas ruas vazias. Pense no desenho de um cachorro feito uma criança. Pense em um desenho que você fez quando era uma criança. Pense em um bicho de estimação que você já teve.

Agora pense em uma professora que você já teve. Em um amigo de infância. Em alguém que já morreu. Em alguém que você ama. Na primeira pessoa que você beijou. Na primeira pessoa que você viu sem roupas. Pense em alguém que você viu na rua hoje. Em um morador de rua. Pense em sexo. Em sexo com uma pessoa que você deseja. Com uma pessoa muito grande, coberta de mel. Em sexo com um cachorro. Em sexo com um morador de rua.

Pense em você mesmo. Em você morando nas ruas de uma grande cidade. Em você dormindo enrolado em um cobertor na porta de um prédio. Em você comendo um prato de carne sentado na porta de um prédio. Você está usando as mesmas roupas que você usa agora, mas elas estão mais gastas e sujas. Você está sem sapatos. Os seus cabelos estão mais compridos do que agora. O seu cheiro está diferente. Uma mosca está andando sobre o lado do seu rosto.

Pense no que você consegue escutar agora.

...

...

...

...

Pense que você está deitado em uma calçada, sobre folhas de jornal. Existe uma pessoa atrás de você, prestes jogar uma pedra pesada em sua cabeça. Uma pessoa vai deixar cair uma pedra em sua cabeça. Depois essa pessoa vai jogar gasolina no seu corpo, até as roupas que você está usando ficarem cobertas de gasolina. E vai botar fogo no seu corpo. E você vai queimar até ficar irreconhecível. Pense em seu corpo queimado, como se você fosse um pedaço de carne assada. Pense em uma pessoa que você conhece comendo seus pedaços.

Agora, pense em você mesmo, sozinho nessa sala. Você sentado, no escuro, pensando. Pense nessa sala vazia daqui a muitos anos. Pense em você mesmo daqui a muitos anos. Pense em viajar para um lugar muito longe daqui e encontrar por acaso uma pessoa. E ficar surpreso ao perceber que essa pessoa sou eu, daqui a muitos anos, em um lugar muito longe daqui, muito tempo depois que este trabalho que estamos fazendo já tiver terminado, e a gente tenha deixado de se falar aos poucos, e tenha perdido o contato um com o outro. E nós dois vamos nos cumprimentar com um abraço. Ou com um beijo. E podemos conversar sobre tudo que aconteceu nestes anos todos.

Agora você pode abrir os olhos.

PS. Colaboradores de longa data, Dani Lima e Alex Cassal convidaram Denise Stutz, Cristian Duarte e Márcio Abreu para criarem um pedaço de um espetáculo que só conheceriam por inteiro a poucos dias da estreia. Julio Cortázar servia de ponto de partida, mas não de chegada, e cada diretor devia encontrar seus próprios procedimentos para falar de alguns assuntos comuns: acaso, relação com o outro, a sensação de começar algo novo, como estar pela primeira vez diante de um desconhecido.  Cada um dos cinco diretores passou três semanas acompanhados pelos intérpretes Júlia Rocha, Fábio Osório, Francisco Thiago e Renato Linhares. Ao longo do processo, alguns materiais foram modificados ou desenvolvidos pelo diretor seguinte; tornavam-se cenas, jogos, solos, sequências. E dias antes da estreia, quando todos os artistas envolvidos se encontraram para verem o resultado do processo, perceberam que não havia ali um espetáculo composto de materiais diferentes, mas sim vários espetáculos; pelo menos seis. 6 modelos para jogar. Na base de todos eles, estava o desejo de apresentar um espetáculo que convide o espectador a habitá-lo, que construa a sensação de deriva, assim como um transeunte pode se perder em uma paisagem desconhecida. Como um jogo.

Anterior
Anterior

ORELHA

Próximo
Próximo

DANÇA SEM MEDO