SALVAR OS LIVROS
Lisboa, 08 de Outubro de 2023
Da última vez que estive aqui eu falava de livros lançados às fogueiras. Hoje, nesta comemoração da Biblioteca de Alcântara, quero falar de livros que escaparam às fogueiras.
Em 1934, um ano depois da grande queima de livros promovida em Berlim pelo regime nazista, um grupo de escritores exilados criou em Paris a Biblioteca dos Livros Queimados, a reunir obras de autores como Marcel Proust, Karl Marx, Sigmund Freud, Bertold Brecht, Helen Keller, H. G. Wells. As leituras, palestras e exposições organizadas pela Biblioteca dos Livros Queimados tornaram-se um ponto de encontro indispensável para os intelectuais fugidos dos nazistas, até a ocupação da França forçá-los a uma nova fuga. Mas a esta altura outra biblioteca semelhante já funcionava em Nova Iorque, recolhendo livros, relatos, documentos e autores sob perseguição.
E outras se seguiram.
Quando os nazistas invadiram também a capital da Lituânia, Vilna, onde se encontrava uma das maiores bibliotecas judaicas da Europa, bibliotecários e estudiosos criaram a Brigada de Papel, que conseguiu contrabandear livros, manuscritos e pinturas para esconderijos subterrâneos espalhados pela cidade, de onde foram resgatados após o fim da guerra.
O mesmo aconteceu em Tombuctu, cidade no Mali que abrigou por séculos coleções inestimáveis de manuscritos medievais, até que em 2012 um golpe militar do Al-Qaeda derrubou o governo democrático. Durante meses, um grupo de bibliotecário, mais seus irmãos, primos e amigos, trabalhou em segredo durante as madrugadas, transportando mais de 30.000 livros para locais seguros. Quando os do Al-Qaeda chegaram com suas tochas, encontraram apenas prateleiras vazias. Esta história foi contada no livro com o notável título The bad-ass librarians of Timbuktu – obviamente há aí um filme de sucesso à espera de ser feito.
Mais recentemente, trabalhadores na coleta de lixo de Ankara, na Turquia, criaram no prédio abandonado de uma fábrica de tijolos uma biblioteca apenas com livros descartados que foram por eles recolhidos, recuperados e organizados. Uma biblioteca que já conta com 6.000 volumes que vão da literatura às ciências, dos livros infantis à banda desenhada.
Na verdade, não é dos livros salvos da fogueira que quero mesmo falar, quer sejam exemplares raros de valor inestimável ou edições amarfanhadas e com manchas de comida da Pipi das Meias Altas. Mas sim de seus salvadores, estas pessoas corajosas e apaixonadas que escolheram uma das mais bonitas profissões: cuidar de livros e de gente. Pessoas que a falar em voz baixa vão salvando o mundo, dia após dia.
Feliz aniversário.
PS. E quero falar ainda que Annibal Barros Cassal, que ensinou-me a amar os livros e fez anos no mês passado, também foi um bibliotecário.